quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Preguiça

Ai, que preguiça que tenho dos reacionários, das pessoas que cuidam mais da vida alheia que da sua própria! Se ainda fossem pessoas críticas, indignadas com atos verdadeiramente nocivos realizados pelos outros (quantos exemplos na política, na religião, na economia, na vida cotidiana de maus-tratos a pessoas indefesas e animais?), isso seria útil para fazer do mundo um lugar melhor.
O problema é que se trata de gente (?) preocupada com a intimidade dos outros, com o que os outros são - gays, artistas, esquisitos, criativos, mulheres, negros. E até no caso de condições obviamente não naturais, nem escolhidas: pobres. Para tudo há um horrível juízo de valor: é porque fulano É assim. Por isso tem que apanhar, ser preso, morrer. Por isso está ferrado, está sendo castigado, é demonizado. Não posso com isso.
No caso da aplicação da justiça contra crimes de fato, também vale a discriminação - depende muito do partido, da cara do criminoso, de suas alianças, se ele será julgado ou não. Mensalão só serve para alguns, roubar em grandes obras e não ser investigado é para poucos. Vai ver, com a internet, redes sociais e que tais, as pessoas comuns resolveram agir como os juízes de plantão - como vale o non sense, a falta de argumentos ou simplesmente não enxergar a razão, é que temos visto tantas manifestações racistas, preconceituosas, anacrônicas, horrorosas e inaceitáveis em toda parte.
Sim, essa parcela da humanidade (?), infelizmente cada vez maior, me dá preguiça de existir aqui, agora, com ela.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A difícil arte da aceitação

É mais fácil aceitar o (supostamente) igual. É difícil que nos aceitem exatamente como somos. São princípios da existência humana.
Não faz muito tempo, descobri a farsa da alteridade. Eu acreditava muito nela, como educadora. De que era possível se colocar no lugar do outro. Não é. Há muito dificuldade em aceitar que o outro é diferente, outro planeta totalmente diverso de nós, e que mesmo assim é possível (se assim se desejar) exercer a tolerância, a aceitação. Uma arte dificílima, que pouca gente está a fim (se souber do que se trata) de praticar.
Já falei aqui do pretinho básico, de como tentamos nos adaptar a várias situações. Acho a adaptação outra arte, fundamental, inclusive parte do currículo da convivência. Mas não vale a pena quando temos de deixar de ser quem somos, de dizer o que pensamos, só para agradar os outros. E são coisas que fazemos tão pouco a pouco, tão devagarzinho, tão naturalmente, que nem percebemos quando não estamos mais felizes, quando não nos reconhecemos no espelho. Eu já ouvi muita gente dizendo que queria me ver bêbada ou que eu devia fumar unzinho. Enchi a cara uma ou outra vez, mais por acompanhar o outro do que por qualquer outro motivo, e sempre me senti mal depois - acredito, aliás, que os excessos impedem que saboreemos qualquer coisa, pois nos fazem perder o paladar e, consequentemente, o prazer. Não vou ficar tentando adivinhar o que pretendiam as pessoas que me desejavam isso, mas uma coisa é certa: queriam que eu fosse diferente, mesmo por alguns momentos, do que sou. A tal dificuldade, mesmo eventual, de aceitação.
E quanta energia é gasta querendo mudar alguém! Pois isso significa não seguir o fluxo natural das coisas, não "deixar rolar". E deixar rolar não significa deixar de cultivar os relacionamentos, como flores que são. Afinal, se o sentimento da "diferenciação" deve ser natural, o convívio com o diferente exige esforço. E sem o convívio morremos, de todas as formas. Nesses desafios é que reside (ou deveria residir) a beleza de sermos humanos.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Ouvindo coisas

I don't see dead people. Nem ouço, ainda bem!
Mas tem acontecido de ouvir uma vozinha estridente me dizendo para fazer isso ou aquilo. A voz se confunde com vontade incontrolável, na maioria das vezes. Assim aconteceu com a urgência de cortar os cabelos, assim acontece quando tenho de parar 5 minutos de trabalhar e fazer um desenho, ou quando um haikai fica martelando na minha cabeça. Eu, que nunca fiz haikai, que nunca sequer fui da turma da poesia! Mas essas coisas buzinam na minha cabeça até que eu dê vazão a elas. Aí ficam sossegadas um tempinho, e logo recomeça o buchicho.
Será isso a criatividade? Sempre me achei uma pessoa criativa, mas acho que agora a torneirinha quebrou. E saibam: não pretendo consertá-la nunca.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Um balanço

Como encontrei vários amigos nos últimos meses, inclusive alguns que não via há anos, soube de novidades ótimas na vida deles. Nascimentos, pós-graduação, novos trabalhos, projetos muito legais. E fiquei muito emocionada e contente com isso, porque são pessoas bacanas e merecedoras dessas vitórias. 
Fiquei pensando, então, no que tenho feito, em quais foram minhas vitórias. Neste ano saturnino, foram principalmente vitórias internas, que apenas tiveram início. Respirar, perguntar somente a mim o que quero, ouvir a voz da intuição, calar os demônios interiores. Dar asas à imaginação, à criatividade, ao feminino. Ou seja, fazer a faxina interna para poder olhar com clareza aquilo que é de fato importante. Me revestindo de coragem para mudar um comportamento aos 40 anos de idade. Daí ter que aprender a respirar, pois será preciso muito fôlego!

Amplexos contra complexos

Alguém postou no FB uma matéria a respeito do poder de um abraço mais longo, acerca de seus efeitos sobre o emocional de uma pessoa. Eu sou testemunha vivíssima de como isso é verdadeiro. Verdade epifânica, milagrosa.
Recebi nos últimos tempos abraços tão regenadores, presenciais e à distância, que me deram vontade de chorar, como um cachorrinho novo. Como se eu renascesse, vendo de novo a primeira luz do mundo, dentro daqueles braços que me abraçavam. Às vezes de amigos queridos mas não tão íntimos, que simplesmente sentiram que aquele gesto simples e gratuito mas pleno ia me ajudar a avançar mais um pouco no caminho da esperança. Quando não era respeitosamente silencioso, o abraço era seguido de um "Vai dar tudo certo", como parece dizer a personagem que deseja "Buona sera" para Cabíria, nos momentos finais do filme. E eu senti claramente afeto, paz, bem-aventurança vindo daquelas pessoas para mim enquanto me abraçavam. Daí o choro, a emoção diante desses presentes, das graças concedidas. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Inferno e descanso

Embora eu ande numa fase mais umbilical, não posso deixar de reconhecer como tenho sido coberta de carinho por alguns amigos em meio a uma torrente de mudanças, por isso mesmo difícil. Do mesmo modo que o outro pode ser um paraíso que se torna um inferno, ou que um ou outro venha nos puxar o tapete, há quem com seus cuidados traga o alento, o repouso necessário. Ou seja, embora eu saiba que preciso cada vez mais me importar menos com o que é do outro, sei também que não conseguiria viver sem me relacionar minimamente com os outros. Mesmo que algumas decepções façam parte do pacote.
Não sei o quanto o outro é o espelho de mim mesma, como afirmava Lacan. Que é parte desse espelho, não tenho dúvida. Mas é sempre surpreendente perceber, nesse processo de acolhimento que tenho vivido, como os outros me veem.
A Simone, que já havia me mandado o texto lindo sobre o amor e outros bichos, andou escrevendo, sempre lindamente, sobre como me percebe, e eu fiquei realmente espantada. Suave. Serena. Equilibrada. De outra amiga, Cláudia, ouvi que sou sistemática. De um amigo de décadas, Carlos, ouvi que sou corajosa.
Eu acho que sou maluca e um pouco inconsequente, choro por tudo, não sou organizada, quero fazer tudo ao mesmo tempo (alguma megalomania), vou no vai da valsa. Se pareço serena, pouco passional quando escrevo, é porque, à semelhança das vacas, sou um ser ruminante. Então, quando escrevo, muito já foi deglutido, elaborado. Talvez falte, como indica a terapia, a experienciação. Ou seja, botar a boca no trombone, me atrever mais, mesmo normalmente sendo alguém que dá as costas àquilo que "já não deu". Queria ser mais fogo que água. Talvez seja cultural - o meu lado nipônico me contém na hora em que devia explodir. Talvez seja trauma familiar. Talvez me acometa às vezes um cansaço de existir, como diria Pessoa.
O fato é que é difícil não se contagiar do outro, para bem e para mal. É difícil o sangue não errar de veia e se perder. Por ora, tenho aproveitado o momento bom do outro-que-traz-descanso. Porque sei que logo virão outros de todo tipo, inclusive trazendo uma escadinha pro inferno, a primeira coisa que tenho feito ao acordar é ME olhar no espelho, para não esquecer quem sou, que o outro é bem-vindo, mas que a casa/vida/alma é minha...

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A moda da busca

Vivemos um tempo de enormes contradições. OK, é um chavão, todas as épocas têm as suas, mas ESTA em especial (porque é a que vivo, porque é a que observo num instante mais introspectivo da vida? ninguém saberá jamais!) me espanta de verdade. As pessoas parecem mais loucas, agressivas, dizem e fazem o que querem, pouco importando o outro. Olhou feio, alguém pode jogar gasolina e atear fogo em você. Por outro lado, está na moda a busca da felicidade. Talvez quem busque a felicidade esteja principalmente fugindo dos loucos agressivos que pululam aos montes, inclusive os que habitam potencialmente em cada um.
Só para ilustrar: um professor de ética foi aplaudido de pé no Jô ao falar dessa busca; ela foi tema de Globo Repórter; a nova novela das sete, que segue a fórmula de Lost, também trata do tema. É matéria de revista gente mudando de vida, de rico financista ou advogado ou empresário para morador de uma casa no campo.
Eu, pessoalmente, acho o tema apropriado e fascinante. O tipo de coisa que não deveria nunca sair de moda. Sempre me vi seguindo essa "tendência", mesmo de uma forma destrambelhada. Fui percebendo que o que importava era a bagagem que eu levava comigo - nunca importaria o lugar, se eu estivesse bem comigo mesma. E a entrevista do Clóvis de Barros Filho, o tal professor que foi ao Jô, veio temperar mais essa percepção: mesmo sem chegar a nenhuma conclusão, pois não existe mesmo, ele disse que a felicidade está nos momentos que gostaríamos que não acabassem nunca. Ele deu o próprio exemplo, de como se sente pleno na sala de aula.
Fiquei pensando nas coisas que me trazem plenitude e nos momentos que não gostaria que tivessem fim. Para mim não são sempre a mesma coisa - há aquilo que de alguma forma pode se repetir (normalmente que depende só de mim, talvez como a sensação na sala de aula de Clóvis de Barros) e me faz feliz, há os instantes incontroláveis - e felizes. Para mim (e eu concordo com o professor de que para cada um é de um jeito, um único jeito, intransferível), a mágica está em ficar com os sentidos alertas e fruir cada um desses diferentes momentos, todos plenos da graça que é viver. Talvez a busca chegue ao fim exatamente quando se decida viver.

Poetientendendo

Sempre fui mais da prosa que da poesia, e acho que sei por quê: meu poder de síntese é parco, sou mais das longas análises que dos silêncios ensurdecedores nas entrelinhas. Mas fico emudecida diante de um bom poema, de um verso carregado de sentidos.
Esses dias me voltou como um bumerangue a "Canção excêntrica" de Cecília Meireles. Publiquei no FB. E aí fiquei com os versos pendurados na mente, nos lábios, nas mãos, especialmente esses:  

"Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida."


Penso que é porque eles mostram a dificuldade do desapego, do fazer o que deve ser feito, de simplesmente seguir em frente. Isso porque me pego negaceando em meus passos, hesitando aqui e ali. E mesmo sabendo que só há jeito de seguir, prosseguir, ir, ainda caminho como quem borda o ponto-atrás - avançando um ponto-passo, retrocedendo meio ponto, meio passo. Ainda que isso seja só em pensamento, em um ligeiro temor diante do inevitável futuro. 
Mas sigo - abro o abraço, me despeço do ontem, retomo os passos e sigo. 

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Peripateticamente

Que eu me lembre, desde criança sempre fui do agito. Minha avó dizia que eu não andava, corria. Cheguei a perder alguns dentes de leite correndo e me estabacando. Para não falar de algumas cicatrizes que vieram com as quedas.
A idade faz a gente tentar se conter, falar mais devagar, pensar com mais calma, calar mais vezes. O que é ótimo, porque nos torna mais consequentes e conscientes de nossas ações e escolhas.
Mas eu continuo precisando do movimento para viver. Pra facilitar, meus principais signos astrológicos (Sol, ascendente, Lua) são cardinais, os que precipitam a ação. Sei que tem gente que precisa ficar quietinha num canto pensando sobre o que fazer, qual o próximo passo a dar (e juro, estou aprendendo a respeitar esse outro ritmo). Eu fico algum tempo assim, quieta, penso, choro, rumino, reflito, mas logo percebo que tenho de colocar algo em movimento. Antes eu achava que era apenas a mim mesma que eu movimentava; agora percebo que é a vida. Porque vi que na minha vida as coisas assim se dão: mais faço, mais acontece; nada faço, nada acontece. Ação e reação.
Claro que hoje tento não "agir por agir", fugindo assim à reflexão essencial que as crises trazem. No entanto, mesmo quando estou arrastando os pés presos a bolas-de-ferro-de-tristeza, procuro prosseguir com aquilo que me faz bem, além de redobrar o foco no trabalho. E percebo como a tristeza, mas não a reflexão, vai se esvaindo aos poucos. E de repente coisas alegres surgem na minha frente, possibilidades mil, a chance - imediatamente agarrada - de realizar antigos sonhos. As questões da vida repentinamente se iluminam de sol. A tristeza pode estar ali, mas faz tanto, tanto sol que ela se encolhe num cantinho, com seus óculos escuros de viúva triste.
Um dia desses, li um texto sobre faxina emocional, tema que tem me interessado em particular. E de novo, lá estava essa imagem do movimento necessário - o processo psicanalítico era comparado a caminhar pelo inferno (como também me lembra meu terapeuta): de preferência não apenas em círculos, sem sair do lugar, embora, como o autor bem lembrou, a imagem infernal tradicional seja circular (e viva Dante por seus insights). 
Pensar nisso tudo (porque a mente também não para) me fez lembrar de Aristóteles, o discípulo de Platão. Com todo respeito que tenho pela alegoria da caverna, pelo mundo ideal e coisa e tal, acho que, tivesse eu vivido na Grécia antiga e o contexto não fosse de total misoginia, seria da turma dos peripatéticos. Sairia com eles caminhando e aprendendo à medida que caminhava, com as acaloradas e ricas discussões entre nós. Contudo, acho que em pouco tempo arrumaria minha malinha e sairia andando, aprendendo/apreendendo outras paragens, além-Grécia, além de mim.

domingo, 20 de outubro de 2013

A música épica da Esperança

Este blog estava meio abandonado, depois de alguma (muita) tristura. Talvez por coerência: nada estava soando aqui dentro, tudo um grande silêncio, só ecos de passos arrastados num corredor escuro e antigo.
Aí escrevi sobre o aniversário de 80 anos dos queridos pais de uma amiga querida, no Nem guerê nem pipoca, e também sobre seu amor longevo. Uma amiga, a Simone Adami, a quem enviei o link, leu o texto e escreveu no Facebook um outro, maravilhoso, sobre o amor e outros bichos. E disse ainda que lendo ESTE blog aqui se viu querendo voltar a ser, e não apenas a soar.
Puxa, são gentilezas assim que me fazem pensar nesse poema de Quintana, tão conhecido da época do trabalho no cursinho:

Esperança

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Coisas assim, palavras assim me trazem à mente a imagem da humanidade como um intrincado conjunto de címbalos, tocando uns aos outros, fazendo soar uma grandiosa, enorme melodia. Soam e ressoam no íntimo, fazendo brilhar ali a luzinha dos olhos verdes da Esperança, oculta sim, mas viva, viva.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Benesses da amnésia

"Não lembro". Duas vezes essa frase no mesmo dia, e um horrível déjà vu, uma outra cena também ligada a um estado alterado de consciência (mas daquela vez com imprecações em público - terá sido por isso o retorno misterioso do ex? uma indubitável sincronicidade?).
O que alegar quando não se lembra de algo? A amnésia garante inimputabilidade?
Da pessoa que eu julgava minha amiga, li isso: "Não lembro, estava tão bêbada que perdi a consciência. Se fiz algo, peço desculpas". Simples assim.
Interessante que mesmo com a falta de memória eu não tenha ouvido/lido nada do tipo "Imagine! Impossível!". A resposta veio prontamente: "não lembro".
Neste exato momento bem que eu gostaria de ser abençoada por toda essa amnésia.

domingo, 25 de agosto de 2013

A cidade que habita em mim

Sou fã de carteirinha do Ivan Martins, editor que assina uma coluna semanal na Época, desde o primeiro texto que li, num momento crucial, daqueles de querer sair gritando e saber que ninguém vai ouvir. Era como se em vez de me ouvir aquele sujeito tivesse algo a me dizer, uma mensagem a entregar, escrita por alguém que entendia perfeitamente como eu estava me sentindo. Desde então, leio sua coluna toda santa quarta-feira.
Na última quarta, ele fez uma comparação lírica e pertinente entre pessoas e cidades. Dizia que cada pessoa é uma cidade, ou pode ser só um deserto varrido pelo vento, e que cabe a nós (também cidades repletas de peculiaridades) explorar esses territórios mais ou menos cheios de mistério.
Gosto dessa imagem. Também porque gosto do tema cidade, mas principalmente porque entendo bem o que é andar por desertos estéreis ou por ruelas suspeitas e escuras, e bem há pouco por uma paisagem que começa com casinhas coloridas e depois se descortina em planícies, montanhas e rios que parecem não ter fim. Às vezes acontece de na minha própria cidadela soprar um vento inesperado e indesejado (um passado sibilante querendo voltar). Outras vezes, a paisagem à minha frente, a que quero desbravar, se acinzenta, emudece (até os pássaros se calam), se esvazia. Somem as pontes e surgem muros sabe-se lá de onde. Por algum tempo fica assim, e então me sento à entrada esperando ser novamente bem-vinda...
Paisagens vivas, cidades cheias de histórias, belezas, solidões e segredos, é isso mesmo o que somos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Pretinho básico, ou Olha como sou legal!

Com essa história de terapia, vou tendo vários insights, alguns tardios, mas fazer o quê? Antes tarde, não é isso? Antes aos 40 do que nunca.
Um desses insights foi sobre o pretinho básico, aquele vestido que toda mulher TEM que ter. De fato, é muito prático ter um no guarda-roupa. Eu me rendi a isso bem recentemente, pois sempre tive muita dificuldade em resistir aos vestidos cheios de cores e estampas. Afinal de contas, um pretinho básico nos deixa adequadas a qualquer ocasião. Basta acrescentar o acessório certo, o sapato correto, et voilà, as portas se abrem (ou, pelo menos, não se fecham).
Mas o fato é que os pretinhos básicos uma hora se vão, de tão usados em todas as ocasiões que pedem atitudes discretas e adequadas. E quando saio para comprar outro, acabo voltando com um... pouco básico. Pode até ser preto (cor que, aliás, adoro), mas sempre terá um detalhe que não o deixará combinar com tudo.
E cadê o tal insight? Ah, sim: um dia desses, estava arrumando o guarda-roupa, verificando se havia algum vestido que deveria doar. Então me dei conta de que não tinha nenhum pretinho básico, que todos os subsistentes eram mais ou menos coloridos. Cheguei a cogitar que precisava de um novo vestido preto, bem "normal", mesmo que a ideia não me parecesse tão animadora. E pensei em seguida como muitas vezes nos forçamos a encarar algo que não nos apetece para nos sentirmos apropriadas, aceitas.
Quantas vezes nos transformamos num modelo básico de comportamento para agradar à maioria das pessoas? Acabamos nos tornando nós mesmas um pretinho básico que se adorna com o acessório correto para cada ocasião - para não fazer feio, não escandalizar, não provocar comentários. Em suma: para passar batido. Não incomodar.
Embora eu prefira as estampas e cores, já me peguei muitas vezes me adaptando demais a situações e pessoas. Aceitando/engolindo falas e condições absurdas de parceiros, fazendo coisas para agradar ao mesmo tempo que rangia os dentes. Como se estivesse dentro de um vestido que me constrangesse (como as roupas que às vezes herdava dos irmãos mais velhos, oh God!), ou com sapatos muito apertados. O mais maluco é como essa situação incomoda e como é difícil nos livrarmos dela. É angustiante saber o que se deve fazer e se sentir impotente para fazer. A alma está sendo torturada, e a mente (ou o ego, ou o animus, ou a persona, ou as convenções, sabe-se lá) diz: aguente firme. Será que TEMOS que aguentar? E não estou nem pensando em mim, nos meus sapatos apertados, quando escrevo isso, mas em amigas que estão neste momento sendo esmagadas por uma situação, que sentem os ossos quebrando, mas ainda não conseguiram sair de baixo dos escombros. Tenho certeza de que conseguirão, que vão soltar um grito (exatamente como uma amicíssima fez) de basta, no meio da noite, para todo mundo (principalmente elas mesmas) ouvir.
Não por acaso, depois de um café com duas outras grandes amigas (já se vê que este post é para minhas amigas, e para as mulheres em geral), falando de tudo um pouco, mas principalmente sobre nossa condição feminina, uma delas compartilhou o pdf do livro Mulheres que correm com lobos (minha amiga que uivou pelo fim de sua situação já tinha falado dele há alguns anos, mas não me animei na época com o título piegas) da junguiana Clarice Pinkola Estes. Bom, o livro é mesmo um pouco piegas, e seu tom de autoajuda (muitas repetições, um certo didatismo, muitas metáforas) às vezes cansa um pouquinho. De qualquer modo, é MUITO pertinente a toda essa história de se ajustar para agradar, vestir uma pele que não é nossa, ou perder a pele até ficar ressequida, à mercê das intempéries e maus-tratos (como a história de uma mulher-foca contada pela autora).
Depois de alguns insights como esse, tenho me olhado com mais atenção no espelho (= alma) para ver o que me serve ou não. O que reflete o que sou, e não o contrário, para que não aconteça o que sucedeu à personagem Jacobina, de Machado de Assis. Provavelmente terei um pretinho pouco básico no guarda-roupa, provavelmente me acharão menos "legal" por não seguir as regras de comportamento. Mas certamente estarei mais feliz.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Ariadne, coerência e reinvenção

Minha amiga Tamara, ao comentar meu ensaio bordadístico registrado no Nem guerê nem pipoca, me fez perceber que esqueci de falar de Ariadne quando tratei de fios, bordados e narrativas. Na verdade, até pensei nela, mas no fundo devo ter achado que três vozes acabariam gerando mais ruído que conversa. Também por isso aqui vai um post só para Ariadne.
Digo "também" porque não se trata de uma simples "repescagem", bem longe disso. Mesmo não tendo uma voz como a de Sherazade, narradora nata, Ariadne tem outras qualidades, igualmente importantes.
Pensei primeiro em atribuir ao mito a perseverança, ao lembrar o desenrolar do fio de Ariadne que ajudou Teseu a percorrer o labirinto do Minotauro. Um passo após outro para poder chegar (así se hace camino) - e também poder voltar sobre os próprios passos. Nisso talvez residisse alguma semelhança com o fazer-desfazer de Penélope, à espera de Ulisses. Mas daí me lembrei da contribuição fundamental do mito - o fio de Ariadne se refere a todo caminho trilhado para a solução de um problema. Isso não seria possível sem coesão, sem o contínuo simbolizado no fio tecido por ela. Por extensão de sentido: sem coerência, clareza de princípios.
Além disso, conhecer os passos do caminho possibilita voltar atrás quando se chega a uma conclusão equivocada (no labirinto do Minotauro e da vida). Saber de onde se vem ajuda a saber aonde se chegará - e a retornar sempre que necessário. Reinventar-se, pois mudar também faz parte da caminhada (às vezes até deixando um heroico Teseu por um festivo Dionísio). Talvez não por acaso a "patrona" das fiandeiras seja Atena, deusa da sabedoria... 
Gosto de Ariadne. Gosto de pensar que todos os que têm coerência de princípios - homens e mulheres - guardam algo dela. Tecem o fio da próprio existência, e com ele podem enfrentar os mais tortuosos caminhos, lançar-se à verdadeira aventura da vida, sem se perder de si mesmos.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Penélopes, Sherazades, bordados, narrativas

Um dia desses, não me perguntem como, cismei em bordar. Talvez tenha visto em algum lugar alguém bordando, sei lá. A verdade é que nunca bordei. A pergunta clássica a seguir seria "por que isso agora?" Nada a ver com o suave e sofisticado sumiê com que andei flertando. Mas, para mim, de algum modo, tudo a ver com a narrativa. Pensei em bordar para contar histórias, imprimindo-as, tatuando-as na pele que se insinua no tecido. 
A narrativa sempre me encantou, antes mesmo de aprender a ler. Não por acaso na época do ginásio (atual Ensino Fundamental II) vivi o papel de um caipira contador de histórias, com sotaque e chapéu, o mais perto que cheguei da arte dramática. Não à toa gosto de quando em vez rever e reouvir Forrest Gump e Peixe Grande. Gosto dos narradores viajantes, que costumam ter muito o que contar, seja verdade ou não.
O maior de todos os narradores, porém, não é um viajante (aquilo que conta, portanto, deve vir da imaginação, e não da memória). Ainda por cima, é mulher: Sherazade. Mesmo com esses "senões", tinha uma história na ponta da língua para cada noite passada com o sultão. Rubem Alves, em uma de suas crônicas, diz a respeito dessa narradora: "quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer."
Imagino Sherazade contando suas histórias como quem tece um bordado - um ponto de cada vez, cada um contribuindo para formar uma imagem, como uma palavra sucede outra na narrativa e faz sonhar o ouvinte com aquilo que vê somente por artes da imaginação. O sultão sendo lentamente enredado na trama tecida pela narradora. A palavra que garantia a sobrevivência de Sherazade é a mesma que faz o amor viver, reviver, reinventar-se, avançando um passo a cada dia no complexo desenho criado pelos amantes.
E assim, por obra do bordado, como não me lembrar de outra personagem feminina, Penélope, que tece, desfaz e refaz à espera do marido Ulisses?
Certamente, Ulisses, um viajante nato (herói, pois não?), teria muito mais o que contar que sua pacata e bela esposa. Ela só tece. Mas é como se, na urdidura feita e refeita para ganhar tempo e recusar outros pretendentes, Penélope ousasse começar do zero para reafirmar seu amor. Diferentemente de Sherazade, que retoma a história do ponto mesmo em que parou ("prossigamos", parece dizer diante de um deserto infinito ou das montanhas insondáveis da Pérsia). Para nós pode parecer uma tremenda perda de tempo, fazer e desfazer um trabalho (um retrabalho, não é assim que diríamos?), quase um "Dia da Marmota" (como no filme Feitiço do tempo, com Bill Murray) entre teares. Além disso, Penélope, embora rainha de Ítaca, é como uma das "Mulheres de Atenas" cantadas por Chico: submissa, leal, à espera de seu marido-amante-guerreiro. No fundo, porém, como Sherazade, ela combate a morte bravamente a cada dia. Não prossegue até que Ulisses retorne, como se pudesse congelar o tempo ao desfazer à noite o trabalho de um dia inteiro. Como Sherazade, Penélope não permite que o amor morra.
E o que fica desse enredamento de ideias e personagens? Que para bordar, narrar e amar, igualmente, há que ter talento, paciência e coragem para retomadas e recomeços diários. Não perder o fio, entendem? Não perder o fio.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Sozinhos e solitários

No dicionário, as duas palavras volta e meia aparecem como sinônimas. Para mim, elas têm diferenças sutis, talvez apenas uma sensação provocada por suas respectivas sonoridades. SO-zinho parece terminar num suspiro breve, quase como se não quisesse se fazer notar. Soli-T-Á-R-I-O me dá a impressão de estar com as quatro patas fincadas no chão - daqui não saio, daqui ninguém me tira. É um som metálico, de um pingo caindo de quando em vez numa bacia de ferro, numa sala vazia, monocordicamente, por tempo indefinido.
Na minha modesta percepção, uma pessoa pode ser sozinha e não ser solitária. Ou seja, pode escolher viver só, mas não apartada dos demais, ou pelo menos das pessoas a quem quer bem. É preciso, aliás, ficar sozinho algum (bom) tempo para aprender a gostar da própria companhia. Mas é preciso também se ver nos olhos do outro para enxergar melhor a si mesmo.
De outro lado, é possível ser solitário em meio à multidão. Pois a escolha do sujeito está associada ao isolamento - busca-se uma ilha aonde ninguém mais pode chegar. Como descobrir a si mesmo sem uma outra referência? Aquilo que gira sobre si costuma não sair do lugar, como um disco arranhado (lembram dos discos tocados por agulha? são da minha época! eu tive e ainda tenho! mas hoje é algo vintage). Parece-me necessária, caso não se deseje a interação, ao menos a observação do outro - o que já é um baita exercício de deixar de olhar só para si e assim perceber um mundo, tão vasto mundo para além da porta de casa.
Acaba sendo uma questão de engenharia, além de fonético-semântica - escolher fazer muros, barragens ou pontes, sabem como é? Não há, no fundo, nenhum pecado nisso (e eu já vivi as duas situações), desde que as escolhas sejam conscientes e não pesem (ou até mesmo desabem) sobre mais ninguém.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Vida, morte e vida

Na última semana, soube da morte do tio de uma amiga-irmã.
Embora não se tratasse de uma pessoa próxima, foi alguém com quem convivi algumas vezes durante a adolescência, quando ia com minha amiga à sua casa ou quando ele vinha com sua família às festas de aniversário da minha amiga.
Diante da morte, é inevitável questionar: por que ele, por que agora?  Ele não era jovem, mas sempre foi um homem saudável. A razão diz que foi melhor agora, antes que sobreviesse uma fase mais dolorosa da doença - mas é impossível não sofrer a dor da perda.
Minha amiga postou, em meio à dor, fotos do tio com os irmãos, quando eram garotos. Em preto e branco, com roupas daquela outra época. Uma época cheia de vida e risos, companheirismo e despreocupação com a morte, que estava tão distante. Assim ela eternizou o tio, insuflou juventude à sua memória. No final, passado o luto, é desse modo que ele será lembrado, como se o roteiro fosse invertido, e à morte se seguisse a vida, mais uma vez.