quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Juntos, para o que for

Tenho procurado não me afligir com o resultado da eleição, no próximo domingo. Difícil. Fico dividida entre esperar o milagre da vitória democrática e fortalecer o espírito diante de tempos sombrios. Penso nos amigos, na família, em tanta gente que ficaria em perigo no caso de um avanço fascista. Me dá vontade de estar perto de todos, de abraçar todos, de unir forças e energias e ações e projetos. Não estar no centro dos acontecimentos tem disso, essa distância da ação fundamental. 
Em casa, me preocupo ainda mais com nossa alimentação, nosso bem-estar. Penso que precisamos estar fortes fisicamente também, para o que for. Fortaleço core e coração, mente, corpo e espírito. 
Eliane Brum, em mais um texto belíssimo, fala da importância, em tempos de horror, de não renunciar a nossa subjetividade, de resistir nas pequenas coisas do cotidiano ("no amor, na amizade, no sexo, no prazer de ver um filme ou ouvir uma música, num café bem coado"), do estar junto. Do estar junto com os que refutam a violência, a intolerância, a repressão - reforçar a rede de proteção contra possíveis golpes, que, num caso de instauração do fascismo, certamente virão. Já vieram, quando soubemos aqui e ali de pessoas queridas (poucas, ainda bem) que apoiam o horror; já têm vindo, no terrorismo contra quem ousa se pronunciar publicamente ou simplesmente ser o que é. 
Os violentos que haviam se camuflado nesses poucos anos de governos democráticos agora mostram garras e dentes afiados, fazem chacota da liberdade, repetem frases loucas como autômatos. É muito chocante tanta ignorância altiva, mas não podemos deixar que esse choque inicial nos paralise. Menos ainda o medo. Já vencemos o medo uma vez, unindo forças. De novo, será necessária toda força, toda união. O coração da liberdade, das liberdades batendo junto e muito alto. Para o que for. 

quarta-feira, 28 de março de 2018

A dor e a delícia

Não é fácil ser quem se é, bato nessa tecla várias vezes. Os padrões, as pessoas, o sistema, tudo quer nos engessar para maior controle e "harmonia" num mundo de desigualdades de todo tipo.
Por exemplo: uma moça está esperando um filho daquele que é seu companheiro há duas décadas. O bebê deve nascer a qualquer momento, ela está no final da gestação. Ela, que protelou muito uma gravidez, resolveu gestar uma criança.
Desde o início, houve a cobrança de uma gestação coletiva, com toda a família do marido. Deveria haver a presença constante dos avós paternos, a futura mãe deveria pedir e ouvir conselhos, aceitar a participação de toda a família em sua gestação. Mas ela, já conhecida por seu pouco apreço à sociabilidade, seguiu fazendo e cumprindo suas regras, estudando sobre o assunto, tomando somente para si o desenvolvimento do bebê. Por sorte, é uma mulher independente, que sempre trabalhou e batalhou muito e já colheu alguns frutos desse modo de ser.
Os familiares do futuro pai ficaram inconformados. De lamentosos passaram a irônicos e, num dado momento, agressivos com a futura mãe, que se fechou ainda mais em copas. Somente ela e o bebê, sem precisar de ninguém. O pai se alia aos familiares, impõe à mãe que ela precisa mudar para que continuem juntos. A mãe reage a isso também, dizendo que ele precisará reconquistá-la. Um impasse, no sentido do francês original, de "rua sem saída".
Na verdade, essa moça continua sendo quem sempre foi. Alguém com temperamento forte, pouco sociável, pouco ligada a padrões familiares. A gravidez deixou-a mais sensível e ensimesmada. Sentindo-se invadida, protegeu-se ainda mais. Porque espera um bebê, os circunstantes acreditaram que mudaria para satisfazê-los. Pior: todas as expectativas foram depositadas no pobre bebê, novo messias transformador da realidade.
Mas a vida real não é assim. O bebê até vai mudar a realidade, mas não do jeito que se espera. As pessoas ao redor mudarão em algum sentido, mas não no que se espera. Talvez o casal permaneça unido, talvez seja melhor não, se o que se espera dele é que satisfaça pessoas fora da relação. Talvez o bebê mostre, na verdade, outros caminhos possíveis para a felicidade, como o do respeito à individualidade, o do direito ao silêncio e à calma. Que família não são todos juntos o tempo todo, mesmo se detestando, mas pessoas que, não tendo "direito a troca", deveriam aprender a se respeitar e assim aprender a se amar (até porque o amor de geração espontânea é raro e não sobrevive sozinho).
Ser quem se é pode ser libertador, mas também é doloroso algumas vezes. O preço é alto, mas vale cada centavo.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Eles merecem (?)

Dia desses, fomos almoçar com um casal de amigos e, claro, falamos muito de comida. Num dado instante, o rapaz disse que faria um comentário "aparentemente" sexista. Na verdade, foi escancaradamente sexista, ou pior, machista mesmo. Ele, com apoio da esposa, afirmou que os homens cozinham melhor que as mulheres - que um amigo deles, quando se decidiu a cozinhar, deixou a mulher "no chinelo", porque "quando um homem resolve fazer uma coisa, já viu".
Bom. Na hora, nem respondi. Levei aquela reflexão para casa, coisa que, acredito, ele, o proponente da questão, deveria fazer também. E às vésperas do tal Dia da Mulher fui ajudada na minha reflexão por muita gente reclamando dessa meritocracia masculina, completamente facilitada pelas jornadas múltiplas de trabalho feminino.
Um homem pode se dedicar a ser chef, profissional ou não, curtir esse glamour porque há certamente uma MULHER em algum lugar cuidando das questões comezinhas da vida DELE. A empregada, a mãe, a mulher, a namorada, a secretária, a amiga, a ficante, a irmã, a tia, a avó, até a sogra. Já a mulher tem normalmente que trabalhar fora, trabalhar dentro e ainda cuidar da rotina de outrem, inclusive filho, marido, namorado etc. etc. Fica fácil brilhar, não?
Talvez cozinhar não tenha nada a ver com gênero. Mas tem a ver, como quase tudo, com equanimidade de condições. Os números só confirmam a desigualdade de gênero quanto a quem merece ou não ser bom/boa chef ou qualquer outro/a profissional: enquanto as mulheres gastam 18 horas de seu dia com demandas diversas (as jornadas múltiplas), os homens gastam 10. Não preciso nem comentar a respeito da desigualdade salarial entre homens e mulheres, terra tão pisada.
No caso da atividade gastronômica, podemos ainda aventar a hipótese de os homens se adaptarem melhor a um ambiente culturalmente agressivo, inclusive porque dominado por eles. Mas eu prefiro a hipótese das luzes da ribalta: por que me esmerar no interior doméstico se posso brilhar para o grande público? Michael Pollan, em Cozinhar: uma história natural da transformação, define o churrasco como uma ação masculina, apolínea (dirigida), e o cozido como algo feminino, dionisíaco (caótico). Citando Lévi-Strauss, ele fala das diferenças entre cozinhar "para fora" (caso do churrasco, uma comida que remete à "morte", ao sacrifício primevo) e "para dentro" (caso do cozido, comida geradora de "vida", agregadora de ingredientes e de pessoas em torno dela, um verdadeiro cabaré de asas). Ou seja, desde sempre cozinhar foi sinônimo para o público masculino de ser pop e de ter o controle .
Assim é que ainda hoje, porque tanta coisa não mudou, as luzes vão para eles. Merecem? No dia em que iguais condições de vida forem dadas a todas as pessoas, e ainda assim eles tiverem se destacado, por suas qualidades pessoais, e não por serem homens, poderemos dizer que sim.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

As solidões

Minha amiga Eliane postou no FB uma entrevista dada pela escritora britânica Olivia Laing ao El País. Eu não conhecia Laing, mas gostei da temática sobre a qual ela tem escrito, a solidão. Fui atrás do livro outro dia (A cidade solitária: aventuras na arte de estar sozinho, da Anfiteatro, um selo da Rocco), e realmente é uma delícia a forma como ela articula a discussão sobre a solidão como fenômeno urbano com a obra de alguns artistas da literatura e das artes plásticas.
Mais que isso, Olivia Laing fala sobre as diversas solidões, o sentimento de se sentir sozinho mesmo em meio a muitas pessoas, o viver sozinho e não se sentir solitário, a solitude urbana.
Uma vez, conversando com Eliane sobre um novo relacionamento, ela comentou sobre o que lhe parecia ser minha solidão contínua, que naquele momento poderia ter fim. Aquilo soou um pouco estranho aos meus ouvidos, porque eu não me sentia solitária, mas logo entendi: ela aludia ao fato de eu ter vivido sozinha (mesmo estando em eventuais relacionamentos) por muitos anos, o que não significava, para mim, sofrer com a solidão. Na verdade, temo menos a solidão que a invasão.
Eu me senti sozinha algumas vezes, principalmente em momentos mais difíceis. Mas nunca me vi como uma pessoa solitária. Aprendi a gostar da minha companhia, gosto da liberdade que estar sozinha proporciona (embora, sendo eu mulher, ela tenha seus senões) e sempre cultivei as amizades. Posso dizer que experimentei quase todas essas solidões a que Olivia Laing se refere, umas mais, outras menos. Não me lembro, por exemplo, de alguma vez ter me sentido oprimida no meio da multidão, mas me fez falta conhecer meus vizinhos quando, certa ocasião, um ladrão invadiu o prédio onde eu morava - o terror que senti certamente seria aplacado se eu não estivesse sozinha. A união nos torna fortes, disso não há nenhuma dúvida. Ao fim de alguns relacionamentos, tive a sensação mais de abandono que de solidão, que realmente senti quando fui morar sozinha; foi quando veio aquela consciência súbita, agora sim, estou só, aqui, deitada no sofá-cama no meio desta sala ainda sem cortinas. Mas lidei com isso melhor do que esperava, claro que contando com o apoio de amigos, que logo vieram povoar qualquer vazio.
Via de regra, porém, aprecio os momentos de estar só comigo mesma. Indagar-me se está tudo bem, se o caminho que está sendo seguido é do meu agrado, se falta algo. Só para mim mesma posso admitir, perguntar e responder certas coisas. Posso simplesmente ficar em silêncio - o maior sinal de intimidade que há, no final das contas.