domingo, 25 de julho de 2010

Ser ou não ser positivo

Eu tinha quinze anos quando ouvi da esposa de um primo, uma pessoa que eu havia acabado de conhecer, que ela admirava meu jeito “positivo” de ser. Na hora não entendi o que isso significava, mas percebi que se tratava de uma qualidade – pelo menos do ponto de vista dela, que devia ter vislumbrado em mim uma semelhante.
Essa questão de ponto de vista é fundamental, porque a positividade não é um atributo tão admirado assim. Ela provoca muitos melindres, isso porque o indivíduo de comportamento positivo, segundo o Houaiss, “não tergiversa”; é “objetivo, prático, resoluto”. De fato, em alguns casos, a depender da Lua, do humor e dos vizinhos, isso pode descambar numa franqueza algo assustadora. Mas não é, absolutamente, sinônimo de rudeza, e sim de uma grande sinceridade com os outros e consigo – do que, claro, decorre um preço alto a se pagar.
Nesses tempos de pouca honestidade, seja em nome do proveito próprio, seja por uma convenção social deturpada, julga-se sem apelação quem resolva simplesmente discordar, expressar sua instatisfação ou dizer a verdade. Discordar não quer dizer necessariamente desagregar: também faz parte do diálogo, da crítica, da construção de algo novo, de um consenso mais rico. De outro lado, muitas vezes concordar é apenas ecoar a ideia do outro, sem maiores reflexões – assentir e consentir em tudo, ao menos externamente, só para não se cansar demais.
Digo tudo isso porque, mesmo correndo o risco de ser tachada de inconveniente, continuo a arrogar meu direito de ter ideias próprias e de não me curvar a convenções sociais com as quais não concorde, de duvidar do longamente estabelecido, das tradições inventadas. Mais que tudo, defendo meu direito a uma consciência tranquila, que me permite caminhar pelo mundo com uma bagagem mais leve que a de muita gente...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Repeteco de um samba

Dia desses, estava me lembrando de um projeto que fiz para um programa cultural do Estado e que deveria ser desenvolvido em duas ONGs. Lembrei-me dele porque estava pensando em como gosto de desenvolver projetos. Esse, no entanto, foi um fiasco (fosse pela minha expectativa, fosse pelo despreparo das ONGs, fosse pela imposição do Estado de projetos pouco pertinentes ao contexto). Cheguei a comentá-lo, e seus efeitos sobre mim, em Esse samba no escuro, que reproduzo mais abaixo.
Hoje, com algum distanciamento, vejo como uma situação difícil, que poderia ser um veneno para a autoestima, na verdade consolida em mim algumas crenças. No caso mencionado, uma crença relativa à educação, mas também acerca da vida: a de que qualquer aventura tem que ser boa para todos os envolvidos.
Repetitiva, eu? Sempre que vale a pena.


Esse samba no escuro

Quem conhece minimamente a obra de Chico Buarque logo vai buscar em sua memória musical esse verso, da canção Apesar de você, ícone da música brasileira de protesto dos anos 70. Estive cantando-a nos últimos dias, de novo emocionada com o coro de inconformados que repetem: “Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia”. Com tamanha esperança, jogam na cara do verdugo toda espécie de acusação poética: foi ele que inventou o pecado, a tristeza, “toda escuridão” – dá pra imaginar o que é isso? O Senhor do Escuro, Sauron, criação de Tolkien, ficaria no chinelo diante do poder de “obscurecimento” dos senhores dos anos de chumbo no Brasil.
No entanto, o que mais me toca na canção não é esse terror experimentado, mas exatamente a confiança no futuro, apesar de. Imagino os cantantes perseguindo o carrasco pelas ruas, alegremente, desafiando-o a esconder o dia que raia, a água nova que brota, o jardim florescente, o galo profético. O amor. Cobrando com juros o povo falando de lado, olhando pro chão. E o samba lançado no escuro, à espera de vir à luz, de sua apoteose, que – diz a canção – virá com certeza.
Creio que temos vivido um pouco desse jeito, como quem samba no escuro. Por mais que as pessoas falem aos brados, com uma suposta liberdade, que sequer existia nos anos da ditadura, não ouvem umas às outras. Que canção faz sentido no meio de um bando de surdos? Toda música recolhe-se à escuridão quando perde seu sentido de comunhão – porque só faz sentido se é ouvida, se reúne pessoas em torno de si, se há quem a cante ou cantarole. Não existe no vazio.
Como nós. Não existimos se não nos comunicamos com outros, porque só existimos com relação a. E não há nada mais cansativo do que tentar se fazer ouvir. Pessoalmente, entre meus princípios está o de não discutir com bêbados, loucos e pessoas que gritam – qualidades que, claro, podem se reunir num só ser. Não por querer julgá-los, mas simplesmente porque não há comunicação possível nesses casos, só escuridão, ou, tanto pior, o eco de suas falas destemperadas quebrando-se no vazio. E nada se constrói a partir disso. Nesses casos, faço mais a linha do “vou cantar noutro lugar”, pra lembrar outra canção de protesto da época. Será covardia? Preguiça? Juro que pode ser. Também.
Só sei que toda essa reflexão da não comunicação, da escuridão relacional em que vivemos foi acarretada não pelo contato com adultos, mas pelas minhas tentativas de conversa com meus pequenos alunos de oito e nove anos de idade. Talvez falem tão alto (alguns gritam o tempo todo) porque só assim se sabem ouvidos; imagino que em suas casas só se saiba falar desse jeito. Mas o resultado é que ninguém ouve ninguém. Uma vez, vi um espetáculo de dança de um grupo francês que era uma representação exata da minha sala de aula – pessoas andando de um lado pro outro, cada uma falando uma língua, pensando alto, conversando consigo mesma, sem nunca se encontrarem. Claro que, vindo de um espetáculo, isso parece muito sofisticado e interessante, e ao final aplaudi de pé, com entusiasmo. No caso da sala de aula que beira a histeria, não tive outra opção senão deixar a plateia.
Confesso que fiz isso. Pela primeira vez em tantos anos de atuação como educadora. Percebi, de repente, que, numa época em que o que se fala não faz tanto sentido, somente uma ação pragmática teria efeito. Mas não porque queira fazer disso uma prática costumeira: imagine se os educadores de todo o Brasil resolvessem simplesmente abandonar a arena (porque é disso que se trata, em muitos casos) ao primeiro sinal de histeria coletiva? Não – acho que foi um protesto puro e simples. Porque percebi, de novo de repente (tenho essas epifanias de quando em vez), que também posso dizer não. Dizer não ao estado de coisas que vivemos, às condições precárias do ensino, à deseducação, à falta de respeito, ao voluntarismo puro e simples (“quero porque quero”). Porque pretendo continuar gostando do que faço, fazendo aquilo de que gosto. E as pessoas (alunos, coordenadores de instituições etc.) também têm que saber o que pensamos – não podemos posar de heróis, santos ou mártires. Temos que trazer à luz o porquê das nossas ações e escolhas, não sofrermos passivamente com o estado das coisas. Ou nada faz sentido.
Um sistema político pode ter um ciclo de vida, um prazo de validade. E a confiança nessa descontinuidade, que cedo ou tarde virá, é o que vejo em Apesar de você. Mas acho que o ser humano segue outra trajetória, mais complexa – e não creio que possa fingir que educo alguém apesar de ele insistir em não me ouvir, apesar de ele insistir em ser grosseiro com os colegas. Pensar que isso é possível, sem que tentemos combater aquilo que fere a todos (e até mesmo revendo as escolhas feitas), é continuar sambando no escuro.

12 de novembro de 2007