terça-feira, 14 de setembro de 2021

Sororidade e nossas lutas diárias

Quando fui trabalhar na TV Cultura, tive de cara um impasse: a pessoa que exercia a mesma função que eu, com quem deveria dividir algumas informações e partilhar o mesmo modus operandi, antipatizou comigo. Bastante, eu diria. Ou, pelo menos, assim pareceu. Depois percebi que duas senhoras, ex-professoras, que lá trabalhavam como consultoras e a tratavam como mascote, falavam mal de mim para ela - e não parecia que falavam: eu as ouvia falar, na minha cara. Ouvi-as comentando, por exemplo, que eu nem bem havia entrado para a equipe e já ia viajar - algo que tinha combinado com meu chefe assim que fui selecionada, porque tinha um compromisso em outro estado, com passagens compradas e tudo. As duas me tratavam com desdém, uma era irônica, a outra sequer respondia ao meu cumprimento. Nunca soube o porquê. 
A minha relação com minha colega, porém, mudou quando, no dia do seu aniversário, eu organizei uma festa surpresa, com vaquinha para o bolo e que tais. Ela foi de fato surpreendida, ficou roxa e emocionada, e daí para adiante nos tornamos muito amigas, e o somos até hoje, apesar da distância. As duas professoras não gostaram nada. Às vezes, havia tentativas de colocar a ex-mascote contra mim em questões comezinhas, mas não deu certo. 
Por que conto essa história aparentemente bobinha? Porque sempre me incomoda que as mulheres sejam desunidas por ninharias, por competições pífias, por juízos apriorísticos. Hoje, apesar do peso do termo sororidade, há tantas questões menores pululando no cotidiano que tudo é motivo para desentendimento. Não falo das questões políticas e visões de mundo, mas de questiúnculas mesmo. Outro dia, assisti a um debate acalorado nas redes sobre ser mãe de crianças e mãe de pets porque uma outra amiga disse que não tinha paciência com comparações entre o sofrimento de umas e outras. Acho que se fosse ao vivo as mães todas teriam saído no tapa. 
Enquanto brigamos entre nós, enquanto chamamos outras de "vagabundas", achamos ridículo que se vistam assim ou assado, que façam procedimentos estéticos ou que continuem gordas e "desleixadas", que queiram ou não ser mães, num julgamento sem fim das vidas alheias, milhares de mulheres diariamente são estupradas, espancadas, mortas, desrespeitadas em seu trabalho e em sua intimidade, por sua cor, por sua orientação sexual, muitas vezes só por serem mulheres. Enquanto brigamos, a sociedade classista, patriarcal, colonial se mantém soberana, sustentada por nosso trabalho e fazendo uso de nossos corpos em todos os sentidos. Enquanto brigamos, não somos sujeito, somente objeto; não formamos um corpo sólido que possa resistir e lutar, mas apenas milhões de partículas à deriva. O julgamento das duas professoras não agregou nada à nossa luta diária, não passou de fuxico desnecessário, pura futilidade. 
Por outro lado, e apesar de tudo, a forma de as mulheres verem a si mesmas tem mudado, que bom. E o modo retrógrado de olhar a si e a outras pode ficar para trás, ou muito reduzido. Assim, podemos nos solidarizar com a luta de alguém que nem conhecemos, perceber a importância de cada luta individual para as conquistas de todas. Quando soube, por exemplo, que uma querida da ECDE, de quem já comprei peças lindas e que é tão atuante na defesa dos direitos das mulheres, está enfrentando um câncer de mama, senti como se fosse uma irmã a enfrentar o problema - tenho acompanhado sua luta e sempre envio meus melhores pensamentos para ela, mesmo de tão longe e sem conhecê-la pessoalmente. Também tive a surpresa de saber que uma amiga amada teve de tirar a mama pelo mesmo motivo - foi um susto pra mim, mas ela me contou com aquela serenidade que a caracteriza tão bem, e ainda me estimulou a fazer logo meus exames. E eu fui, um ano e meio depois, refazer exames médicos, conferir nódulos aqui e ali. Eles continuam lá, mas sob controle. 
Cada vez mais me espanto com a falta de apoio de uma mulher a outra. Eu, que tive, sim, meus momentos de julgamento, mas tive o privilégio de me ligar do absurdo disso mais rapidamente que as duas senhoras de que falei. Não as vejo há muito tempo - quem sabe terão conseguido sair dessa também? Tomara que sim, porque em nossa época só cabem as questões fundamentais, se quisermos evitar a hecatombe completa.