sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Tempos estranhos, estes

Vivemos tempos estranhos, turvos, sombrios.
Jovens marombados resolvem atacar ônibus para punir quem lhes parece suspeito por ter "cara de favelado", homossexuais são agredidos ao andar pelas ruas, adeptos de religiões afrobrasileiras são apedrejados por cidadãos "de bem". Intolerância e violência são cada vez mais comuns, e brotam de onde menos se espera: das pessoas comuns, que, estimuladas pela suposta liberdade de expressão, resolvem atacar o diferente e assim não precisam olhar para a falta de sentido de suas vidas. 
Aliás, a falta de sentido é a tônica desses tempos. Políticos zombam dos eleitores e são ainda mais respeitados por eles. Um governador é indicado a prêmio por gestão de recursos hídricos na maior seca da maior cidade da América Latina e simplesmente resolve bloquear, por módicos 25 anos, o acesso a documentos que o podem comprometer - e ninguém fala nada. Hoje é dia do professor, e há a ameaça de escolas públicas serem fechadas, mas o que é severamente criticado são as ciclovias da prefeitura. Em alguns estados, eleitores estão sendo processados por terem contribuído para a campanha de partidos políticos - com merrecas do tipo 15 reais. Diante dos desmandos, as panelas batem para a presidenta, e o Estado democrático de direito é seriamente ameaçado. O mais alarmante é que quem pede o impeachment ou a volta da ditadura, ou ambos, não tem ideia do que está dizendo. Morreu hoje um dos carrascos da ditadura no Brasil - saiu de cena sem ter sido condenado. 
Nem é preciso dizer que politicamente crescem os medonhos partidos da intolerância e do moralismo.
Crianças são descartadas pelos pais, como aconteceu com o garoto assassinado e deixado num freezer. As instalações de uma ONG respeitada mundialmente são destruídas em nome dos danos colaterais de uma zona de guerra. Imigrantes são hostilizados e menores morrem em chacinas nas grandes cidades brasileiras, mas os locais só se estarrecem com o que acontece bem distante daqui - a cena não menos chocante do garotinho sírio afogado.
Aonde vamos com tudo isso? Não falo só de Brasil, mas do mundo todo. Parece que caminhamos para a hecatombe pura e simples. É tudo ruim demais para ser verdade.
Mas talvez, sendo minimamente otimista, isso possa ser o caminho para que tempos melhores floresçam - a morte das instituições que dá lugar ao novo. Torçamos, então, para que alguma boa semente tenha se ocultado entre as pedras desse caminho cada vez mais árido.

domingo, 9 de agosto de 2015

Pais

Hoje é dia dos pais.
Primeiramente, me lembrei do meu avô, que me criou, me deu amor, acreditou em mim.
Depois, forçosamente e em comparação, me lembrei do meu progenitor. Um pai ausente, ciumento das atenções dadas aos filhos, sarcástico, amargo. O sujeito que, em plena floração de sonhos juvenis dos filhos, botava tudo abaixo.
Eu queria muito que a música do Fábio Jr. tivesse a ver comigo e meu pai, queria poder dizer que nos tornamos amigos ao final, mas não rolou. Tentei ser, senão amada, aceita por ele. Mas não deu. Hoje entendo que era o limite dele, não conseguir amar. Vejo que em cada um dos meus irmãos isso teve um efeito, e houve até quem, entre eles, achasse que o jeito do meu pai de lidar com as pessoas - ele no centro do mundo - fosse perfeito. Houve quem o imitasse, imagine só.
Como não pude enterrá-lo (soube de sua morte quase dois anos depois do óbito), me restou levá-lo para a terapia. Lá nos enfrentamos mais algumas vezes, e por fim creio ter havido um apaziguamento. Compreensão do que já disse aqui, de que não podemos exigir do outro o que ele não tem para dar.
Mas, mesmo sem querer nos dar nada, meu pai deixou sua herança. Me pareço com ele em algumas coisas, e não o nego mais. O que nego são as atitudes mesquinhas, que evito ter. Procuro aperfeiçoar a parecença que existe - ao gosto pelo conhecimento, por exemplo, ajunto o compartilhar. E é aí que entra a herança do meu avô, sua correção apesar de tão anti-heroico. Seu amor salvador, sua confiança irrestrita, seu olhar mais risonho para a vida.
Não poderia ser quem sou se não fossem as minhas heranças. Para isso serve este dia - para lembrar de onde viemos.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Nós e as palavras

Sempre gostei de escrever. Tanto que acabei virando professora de redação e depois editora. Ensinei muita gente a escrever corretamente. Muitos alunos foram além, deixaram aflorar seu talento. Foi e é bonito de ver.
Mas talvez o que eu saiba fazer melhor é ler. Ler através das palavras alheias. Ver o que se oculta atrás delas, o que pretende o autor, o que mostra, o que esconde.
Outro dia, recebi um e-mail cheio de despeito e rancor. A pessoa escreve "bem", corretamente. O e-mail era longo, pretendia contar uma história e, com ela, provocar discórdia. Mas havia tantos, tantos furos. Informações contraditórias. Coisas que não me espantaram em nada. E uma intenção que se despedaçava do início ao fim.
Tenho certeza de que foi escrito lentamente, não aos tropeções. Mas o espírito de quem escreveu tropeçava, sobrenadava em maus sentimentos. Refleti sobre a pretensão do texto, que era a de me atingir. Não cheguei a ter pena, só uma consternação bem longínqua por quem se presta a esse tipo de papel, provavelmente por não ter sonhos, por levar uma vida entediante/medíocre, por ser infeliz e talvez nem saber disso. Quanta coisa dizemos sobre nós ao escrever!
Lembrei-me em seguida de que a história que se contava não pertencia a mim, embora o texto quisesse me fazer acreditar nisso, criando trechos de falsa intimidade. E então vi a mim mesma em um outro patamar, bem distante - dentro da minha própria vida, tão cheia de projetos e sonhos, iluminada de sol, cercada de pessoas que me querem bem.
Então, cantando, criei coisas bonitas e embelezei ainda mais meu dia e meu caminho. Desconfio que não era isso que se esperava - e isso me importa? Acho que nem preciso responder.

domingo, 10 de maio de 2015

Maternidade

A essas alturas da vida, já sei: não serei mãe. E tudo bem. Não me considero uma aleijada. Acho que se foi o tempo em que era obrigatória a maternidade para uma mulher ser considerada completa.
Quer dizer, acho que esse tempo se foi, ou deveria ter ido (mesmo já havendo um termo para definir as mulheres que não querem ter filhos, a geração NoMo, quantos ataques as mulheres independentes ainda sofrem). Cansei de ouvir, já aos 15 anos, que precisava me casar e ter filhos. Depois, os familiares desistiram - viram que eu era "meio diferente", e alguns até apostavam, normalmente em silêncio, que eu era lésbica.
Eram duas coisas que não faziam muito sentido para mim: casar e ter filhos. Não como coisas que me causassem repulsa, mas como padrões que eu não me sentia obrigada a seguir - se rolassem, que ótimo. Mas eu nunca iria me sentir obrigada a uma e outra só porque "todo mundo faz assim".
E não que eu não desejasse um companheiro com quem dividir as aventuras da vida. Ou não gostasse de crianças, ou não tivesse um apurado senso maternal. Tanto é que adotei Chico e Zen, por essa necessidade de dar amor, de cuidar. Antes cheguei a pensar em adotar uma criança, mas a crise me fez colocar pé na realidade. Seja como for, só não me sinto presa às ideias alheias, pelo menos a essas duas (sobre convenções, já falei no Nem guerê nem pipoca).
Quando ouço aquelas frases feitas "mãe é mãe", "mãe é só uma" etc., imagino como isso facilita a vida das pessoas, que, desse modo, não precisam pensar sobre as tão complicadas relações familiares. Minha mãe, por exemplo, fez tudo o que podia por nós, mas não é possível colocá-la no mesmo balaio de todas as mães. Aquela história da "comida da mamãe" nunca rolou muito em casa, porque minha mãe trabalhava fora. Como ela fosse muito reservada, talvez até pudica, não me deu os primeiros toques sobre namorados, sexualidade ou até mesmo carreira a seguir. Fui percebendo isso na conversa de outras mães, com as filhas que eram minhas amigas.
Para minha mãe, o aprendizado materno deve ter sido difícil. Imagino que ela sonhasse com o príncipe encantado, no caso meu pai, que logo mostrou ter pouco de realeza. E ali estava ela, com três filhos para criar, sob a égide dos sogros. Apesar do amor que com certeza sentia, tinha dificuldade em demonstrar afeto - reflexo do que vivera na casa dos pais, com tantos irmãos - e por isso deve ter parecido ausente para meus irmãos. Eu mesma, muitas vezes, vi minha mãe mais como minha filha que outra coisa. Ela não se encaixa no modelão das propagandas de TV ou das mães dos meus amigos. Acho que ser mãe não é puramente fisiológico; embora a natureza tenha um papel importante, há o aprendizado que cada mulher absorve de um jeito. Amar também se aprende, e não há nada mais distante de regras sociais que isso.
Minha mãe tornou-se uma ótima avó, naquele sentido de permitir tudo aos netos, de expressar seu afeto com maior gratuidade. Eu virei mãe de dois gatos e sou mãe das minhas criações, dos meus projetos, que acalento cuidadosamente.
Tá tudo certo. Tá tudo ótimo. E feliz dia, mãe, não pelo que pregam as convenções, não pelo que você "representa", mas por quem você é.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O dono e o autor

O que seria da vida se não tivéssemos insights de vez em quando? OK, deve haver muita gente que não dá ouvidos a esses pensamentos que fazem cócega no espírito, parecendo ter origem na mente, mas certamente irradiados do coração (num sentido mais amplo que o de órgão muscular bombeador de sangue).
Eu tenho cada vez mais valorizado os meus. E um dos últimos foi justamente acerca da vida, de tanto ouvir projetos alheios a respeito dela. Muitas pessoas querem ser donas de sua vida, como se isso não estivesse pressuposto. O problema é o que fazemos dessa "propriedade" de viver enquanto vivemos. Difícil é fugir dos sistemas opressores, das culturas impostas, dos traumas pessoais. Construímos muros e grades ao nosso redor, acreditamos que não temos direito à nossa existência, agimos como autômatos porque acreditamos no que nos dizem, e não na nossa voz interior. Para ser feliz é preciso percorrer um longo caminho de conquistas materiais; ser feliz é lá longe, não cá dentro. Confusão típica de um mundo que valoriza o ter no lugar do ser.
Para fugir a essas armadilhas, portanto, não basta apenas o ser dono da própria vida, realidade da qual nos esquecemos/afastamos, mas dar um passo além: o ser autor da própria vida.
A autoria, por sua vez, pressupõe um impulso criador, e isso já nos basta para evitar a mesmice, a normose e a consequente frustração. Para criar, é preciso entrar em contato com nosso eu mais profundo, que nos define como pessoas únicas, com sonhos e talentos intransferíveis. Talvez esse eu profundo seja o que eu chamei de coração há pouco. Alguns vão chamá-lo Deus (também aqui abarcando todos os nomes que Ele tem nas diversas religiões). E como ser infeliz quando se atende ao que há de mais sagrado em nós?
Por isso eu prefiro ser autora a apenas dona da minha vida. Prefiro bordar meus caminhos, poder mudar de ideia e de rumo quando meu coração assim pedir. Criar saídas onde não houver uma. Fluir com a vida, ver minha chama brilhar até que chegue o dia em que ela naturalmente se apague.