quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Princesas

Ivan Martins, que adoro, publicou outro dia um texto em que dizia que não queria que sua filha fosse princesa, porque não há nada mais besta do que ser princesa, esse ser passivo que vive à espera do príncipe enquanto todos tomam decisões por ela. 
Só repostei o texto, e pronto. Já teve gente defendendo as princesas e atacando as feministas. Até quem dissesse que prefere ficar em casa cuidando do Macho Alfa e tendo direito a um cartão de crédito ilimitado. Já imaginei o Macho Alfa abandonando a princesa amadurecida por uma mais nova e levando junto o cartão, claro, talvez não sem antes dar uns sopapos na ex, lamuriante da perda de seus privilégios. 
Achei tudo muito louco, porque a distorção de ideias é gritante, a pós-verdade impera mesmo. A galera não entende que a luta feminista é por todas, pela igualdade de direitos, e não para sermos iguais aos homens. Que os direitos conquistados contemplam inclusive as que acham que não precisarão deles, mas certamente deles usufruem quando estudam, votam, circulam, escolhem seus parceiros. Que as mulheres podem inclusive, pela ótica feminista, serem princesas, se quiserem, mas não só isso. 
Até mesmo a maior fabricante de princesas do imaginário ocidental, a Disney, reviu seu conceito e passou a criar princesas bastante autônomas e fora da curva, como Moana, Valente, Tiana, Mulan. Bela, de A bela e a fera, já trazia a ideia de que a mulher podia ser inteligente além de bela para ter êxito na vida, mas suas sucessoras vieram botar fogo no parquinho. 
Talvez tenhamos que esperar passar essa onda de ultraconservadorismo para que as pessoas possam ver com clareza o que significa para uma mulher ser livre. Espero que essa liberdade chegue para todas. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Se viver, não case

Ou, pelo menos, não se case para ingressar em uma vida doméstica, de puro trabalho reprodutivo. A menos que seja exatamente isso que você queira, e sim, estou me dirigindo às mulheres.
Quando pensei em juntar meus trapinhos pela primeira vez, ouvi do companheiro que ele tinha medo de que a rotina destruísse o relacionamento. Normalmente, é ela a culpada, a rotina, sempre foi o que ouvi dizer. Não nós, não o que fazemos do relacionamento, mas ELA.
Um dos efeitos da pandemia tem sido o número de brigas e separações provocadas pelo exacerbamento do convívio e de uma intimidade sem nenhum sex appeal. Em princípio, a rotina cinzenta vem retirar o glamour da paixão dos primeiros tempos. Eu até me inclinei a acreditar em parte disso, mas sempre pensei: não pode ser só isso. Por que há casais que conseguem sobreviver ao casamento? Eles sabem driblar a rotina melhor que os outros? A pandemia tornou ainda mais cinzenta a rotina? Quem resiste aos pijamas 24 horas? A não ter tempo de sentir falta do outro?
O que algumas pesquisas têm mostrado, porém, é que as separações durante a pandemia estão quase sempre relacionadas ao desacordo quanto ao trabalho doméstico, com quem faz o quê, uma discussão que muitas vezes não tinha tanta importância, pois as camadas médias, ao menos no Brasil, se valem da terceirização do trabalho reprodutivo e também, com o trabalho fora de casa, mal tinham tempo de pensar no peso que esse trabalho doméstico de fato tem. 
Não faz muito tempo que se popularizou o conceito de sobrecarga mental feminina - junto com a jornada dupla de tantas mulheres, ainda há a ocupação mental com os afazeres domésticos, com os cuidados com a família, o que só aumenta o desgaste. De repente temos nos dado conta de que os homens não se ocupam disso porque sempre há uma mulher que o faça por eles. 
Também temos nos dado conta de que, no final das contas, a culpa pela falência dos casamentos, de ontem e de hoje, não é da rotina. A pandemia iluminadora mostrou que o problema é o papel a que a mulher sempre tem sido relegada, trabalhe ela fora ou não. A rotina doméstica sempre sobra para ela, com exceção de alguns parceiros iluminados, machistas em desconstrução, como dizemos hoje. Ou seja, a pandemia veio como uma cereja de chumbo sobre o bolo dos relacionamentos a dois, um shot concentrado de desigualdades na vida cotidiana de homens e mulheres. E muitas de repente tomaram consciência de qual era o problema - não, não era a rotina pura e simples, mas uma rotina desigual e massacrante para elas, para nós. Eu mesma, quando tive essa epifania, me senti tão liberta por saber que não era a união que me incomodava, mas a atribuição de papéis que não me cabem. 
Porque a ideia de se juntar a outra pessoa para compartilhar a vida, agregar, somar forças, multiplicar o que é bom e dividir o que não é aquela cocada toda, é ótima. Por isso tantas pessoas se unem, por isso é estranho que a simples rotina seja capaz de separá-las. Claro que há muitos casos de diferenças inconciliáveis, visões de mundo díspares - para isso não há muito jeito, e também não é culpa da rotina. Mas a exploração de uma pessoa por outra, ainda que inconsciente, isso sim, é capaz de acabar com qualquer amor, qualquer tesão, qualquer casamento.  
Por isso, reafirmo: se casar, case-se para o compartilhamento de afeto, ideias e experiências, mas não para se escravizar a um costume caduco. Case-se pelo que acredita, e não pelo que foi determinado por outrem. Se sequer suspeitar da armadilha, viva, não case. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O corpo do outro

Tanta loucura nesse mundo de meodeos que é difícil organizar os pensamentos! Além da corrupção desenfreada, da pandemia sem fim, da direita ensandecida, da inflação descarrilada, tem estado em evidência ainda maior um sem fim de abusos do corpo alheio. 
Tamanho o absurdo da distopia que vivemos que, outro dia, ganhou destaque uma briga no Leblon, quando uma mulher, despeitadíssima, atirou garrafas de água contra outra que passava de biquíni num conversível; a de biquíni desceu do carro e desceu a mão na agressora e então foi covardemente atacada, desta vez, pelo namorado da outra, que lhe arrancou a parte de cima do biquíni. A agressora despeitada gravou um vídeo - está na moda agora, vídeos explicativos de agressores - justificando sua ação/agressão como defesa dos bons costumes, porque a outra estaria atentando contra o pudor ao exibir seu corpo malhado no calorão, mesmo noturno, do bairro praieiro carioca. 
Fiquei abismada com a pretensão que tem havido dos recalcados em relação ao corpo alheio. Quem deu o direito a essas pessoas de tocarem de alguma forma o corpo de uma mulher desconhecida? Ou de qualquer outra pessoa? Ou de sequer opinar sobre esse corpo?
A pergunta é retórica, claro, em se tratando de um país machista, sexista e violento, em que as ações contra as mulheres parecem ter sido completamente liberadas neste contexto de horror em que temos vivido, levando ao alarmante aumento do número de feminicídios desde a ascensão bolsonarista e ainda mais durante a pandemia, a denúncias de estupro em toda parte, o que reacende a discussão da legalidade do aborto - e novamente vemos debates absurdos sobre a autonomia que uma menina ou mulher tem sobre o próprio corpo, como no caso da garotinha capixaba que quase não conseguiu abortar após ter engravidado do parente que a estuprava há anos. 
Entre as últimas notícias bizarras sobre o assunto, temos o caso Robinho, jogador de futebol, que participou de um estupro coletivo na Itália e foi condenado pela justiça de lá, mas perigava ser contratado pelo Santos há poucos dias, até que os patrocinadores ameaçaram se retirar caso o contrato não fosse revogado. Além da defesa surreal de Robinho, que alegava não ter feito sexo (só colocado o pau na boca da moça), nem ter feito nada errado além de trair a mulher (só ter se aproveitado de uma moça alcoolizada e fora de si, como os envolvidos reconheceram em conversa grampeada pela justiça italiana), ainda há - embora menos, ainda bem - gente que argumente que há muita maria chuteira por aí querendo se dar bem. Bom, mesmo que fosse o caso, mesmo que a moça fosse prostituta, ninguém tem o direito de sair tocando o corpo dela sem que ela autorize ou esteja consciente. No final das contas, é sempre a mesma história, de como todos têm direito a fazer o que quiserem do corpo feminino, só mudando as circunstâncias. E como, por terem esse direito, os homens, principalmente, saem impunes de tantos abusos. Tudo em nome da normalidade, do costume. No caso de Robinho, praticamente em nome de Deus, que ele evocou diversas vezes nas gravações e em entrevistas, enquanto falava contra o movimento feminista e as mulheres "que nem mulheres são". 
Mas os homens também não querem ser objetificados, apesar da cultura machista do homem que está pronto para todas. Já ouvi de um companheiro que ele não estava sempre a fim, que era preciso criar um clima, e me senti um homem rejeitado naquele momento. Apesar da minha cara de tacho, foi fundamental para ter maior clareza do que é o corpo do outro, que ele não está sempre à disposição do nosso desejo - mesmo que seja um homem! Isso significa que boa parte do que vivenciamos em termos de abuso é resultado de uma cultura, ou seja, algo que pode e deve ser transformado. 

domingo, 27 de setembro de 2020

Bolhas, bolhas, bolhas

Já faz algum tempo que se fala nas bolhas criadas pelas redes sociais, de como só nos relacionamos com nossos iguais, de como só lemos sobre o que nos interessa. Isso só aumentou ao longo do tempo; especialmente com a eleição do Biroliro, mas estava lá desde o golpe contra Dilma Roussef, e desde então temos visto o acirramento das posturas ultraconservadoras cindindo as relações sociais no país (pelo menos, podemos reconhecer claramente os comportamentos fascistas, já não mais ocultos sob o forçoso politicamente correto e a suposta democracia racial).
Embora seja muito mais confortável falar apenas com quem concorda com a gente, até porque é impossível dialogar com um bolsominion, fico pensando o que isso traz para as relações sociais no longo prazo (ou médio, ou até mesmo curto, já que tudo é tão rápido hoje). A possibilidade de troca com o diferente vai se reduzindo mais e mais. Quando os iguais discordam é normalmente por ninharias, como vejo nas redes sociais, nada de fato relevante, nada que valha para melhorar o mundo. 
Imagino que, quanto mais tempo passarmos em nossas bolhas, menos tolerância teremos com as bolhas alheias (algumas merecidamente). Vamos nos evitar cada vez mais, estranhar cada vez mais as diferenças. A vida deve passar a ser um grande condomínio fechado, onde só entram os convidados, e todo o restante passa a ser visto como invasor. 
Num cenário assim, pouco espaço resta para a solidariedade e a alteridade. Difícil imaginar dividir espaços físicos com os divergentes - e parece que até a pandemia veio colaborar com essa demarcação de limites. Só nos "aglomeramos" com poucos, os mais próximos, os mais confiáveis. Como no próprio conceito de "nação", tudo o que está fora disso, desses limites, não merece nossa credibilidade. 
Difícil arriscar muitos prognósticos a partir desse cenário, mas as perspectivas por ora não são das mais animadoras. 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Ainda o lugar de fala

Postei esses dias uma matéria ótima sobre o fato de descendentes de orientais não tolerarem mais piadas nem estereótipos associados a eles. Interessante como sempre aparece alguém para dizer que tudo é exagero, que isso acirra o ódio, enseja um debate e um confronto desnecessários, que nunca viu nada disso, que acha tudo tão natural blábláblá. Meu pai celeste, que preguiça! Mal respondi, mas uma amiga, mestiça como eu, resolveu responder, com todos os argumentos de quem não só sabe do que está falando mas também de quem sabe argumentar de fato. Uma hora ela cansou, já que o oponente, obviamente, não dava conta sequer de sustentar a discussão. Aí entrou outra pessoa para dizer que também nunca viu nada disso, blábláblá. Gente!
O mais louco dessa história é que as pessoas que criticavam o artigo e o suposto "preconceito" dos orientais entrevistados não são orientais. Contaram de suas experiências interétnicas superpositivas, como pessoas (quase) brancas, dizendo não entender tanto amargor e ressentimento, inclusive insistindo na inocuidade das piadas racistas quando ditas por "amigos", na melhor linha "se não vejo, não existe; se não é comigo, não tem importância". Logo os comentaristas supostamente brancos, já sozinhos na discussão, terminaram por elogiar um ao outro, por sua compreensão fina do problema alheio, que nem o próprio outro é capaz de entender tão bem. 
Nada disso é novidade - vemos isso o tempo todo em relação a pessoas negras, a mulheres, ao grupo LGBT, aos mais carentes. Sempre tem alguém de fora dizendo o que é certo, como devem se comportar, o que devem sentir. Até aqui em casa o que vejo ou sinto é algumas vezes colocado em dúvida - será? tem certeza? acho que você está viajando! Não há nada mais espantoso, mais pós-verdade que esses comportamentos que são fruto de uma cultura enraizada, mas não irredutível, não incontornável, graças à deusa. 
É preciso combater todo tipo de preconceito, é preciso dar voz a todos. Muitas vezes será preciso ser antipático, cortante como a espada de um orixá ou santo guerreiro, bradar contra os altissonantes donos da verdade que querem calar os demais. Mas, na maior parte das vezes, ficar em silêncio, somente ouvindo a verdade do outro, tantas vezes amesquinhado, será a melhor, mais bela e mais justa coisa a se fazer.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Aonde vai a educação?

Nestes tempos loucos e sombrios, em que incerteza é a palavra de ordem, fico me perguntando, como tantos, para onde vai a educação. Mais até do que para onde vai a economia. A saúde, já vimos, foi pro ralo. A cultura, então, nem dá pra saber que caminho tomou. Estão tentando expurgar a ciência, mas esta resiste um pouco mais.
A educação me é tão cara porque ninguém nem nenhuma área pode prescindir dela. Ela é a base para a vida, a sobrevivência, a luta e a vitória diária, o desenvolvimento de uma cidade, um país, um planeta. Sem ela, a natureza definha, as pessoas se matam, os corruptos reinam, as crianças e os velhos adoecem. Por isso penso tanto nela nestes tempos de pandemia: aonde vai a educação depois disso tudo? Trôpega, atacada, achincalhada pela trupe bolsonarista?
Eu, que trabalho há anos na área, poucas vezes vi uma necessidade tão grande de mudança e adaptação. No Brasil, sobretudo, pela total falta de planejamento estratégico em qualquer área na atualidade, o que se viu foi o completo atabalhoamento nas práticas educativas, com professores e alunos tentando dar conta de uma nova realidade, a do ensino à distância.
Mesmo eu, mais ou menos acostumada com fazer cursos nessa modalidade, resolvi fazer um que me desse mais ferramentas para encampar os novos desafios, na área de design instrucional. Se não fossem a pandemia e as incertezas dela decorrentes, talvez não fizesse. No final das contas, está sendo interessante, fazer um curso por necessidade profissional pura e simples e não apenas porque "me fala ao coração". Talvez eu sempre tenha compreendido a educação como algo que vem do coração, de uma vocação quase poética, e quase não é mais assim em nenhum lugar, é preciso ter uma boa dose de pragmatismo na produção de conhecimento.
Isso é o que estes tempos duros e a nova educação pedem: pragmatismo. Sem perder a ternura e a poesia, mas pragmaticamente. 

Patrulha amiga, o fim

Acho patrulha uma coisa chatíssima por si. Inaceitável, na verdade. Gente que fica tomando conta da vida dos outros, dando palpites não pedidos, pitacando sobre tudo, um horror. Nas redes sociais, acontece demais, é quase a regra - opinionismo agora se encontrou com bolsonarismo, naquela forma de opinião non sense, sem argumentos plausíveis, puro dogma infernal. 
Já tive amigo ou conhecido dando pitaco nas minhas postagens, especialmente por questões políticas. Vejam: minhas postagens não são abertas a todos, apenas aos amigos, às pessoas que permiti que vissem o que posto. Mesmo assim, tem bizarrices, opiniões loucas não pedidas. A depender da pessoa, só ignoro para não perder a amizade ou cancelo mesmo. E isso porque também não posto coisas muito polêmicas, que dariam abertura aos palpites alheios.
Entre ontem e hoje, vivenciei um novo tipo de patrulha: amigos dos amigos. Começou com ter postado uma foto do ragu de shitake que fiz outro dia - bastou para o amigo de uma amiga, que nem me lembro como foi parar nos meus contatos, dizer que não era ragu, pelo amor de deus, que desse outro nome. Respondi uma bobagem qualquer e ele nem retrucou, tamanho era seu desejo de só causar na postagem alheia. Mais tarde, esse mesmo amigo da amiga apareceu na postagem de uma outra amiga (descobri que temos mais de uma amiga em comum, oh God) em que ela comentava comigo e com uma outra conhecida nossa uma polêmica envolvendo Lília Schwarcz e Beyoncé - isso porque falávamos disso ontem, e estávamos de acordo, as três, sobre a inadequação da fala de Schwarcz. Bueno, esse amigo terceirizado comentou na minha timeline, discordando da minha amiga. E o que se sucedeu foi uma enxurrada de amigos e conhecidos dela (inclusive uma moça que também invadiu outro dia um comentário meu sobre Walter Benjamin, totalmente despretensioso, para me corrigir e, quando viu que estava errada, nem se desculpou) bradando raivosamente em defesa da historiadora branca que resolveu dizer como a diva pop negra deveria se comportar em SEU trabalho, com SUA arte. Uma enxurrada branca, poderíamos dizer, histérica e indignada com as pessoas negras inconformadas com o papel relegado a elas pela branquitude. Como no episódio do programa Roda Viva em que a apresentadora demonstrou clara inquietação com o rapper Emicida ter uma marca de roupas "caras", como se uma pessoa negra que saiu da quebrada devesse ser para sempre pobre e malvestida.
No episódio Lília x Beyoncé, minha amiga teve a maior paciência para responder um a um com argumentos bem plausíveis, e ainda teve de ler uns rosnados de volta. Minha amiga é branca no sentido lato (já que é mediterrânea de pai e mãe), é doutora, é crítica de arte, é filósofa, é professora. Não é a Maria Mané da Perna Torta. Pode ter um quê de academicismo, mas tem senso de justiça, tem semancol. Achei tristíssimo que os integrantes da patrulha também sejam pessoas com boa formação, professores e tal. Que gastem sua indignação com algo tão menos importante (a defesa de Lília, como se ela de fato precisassse) do que a desigualdade social brasileira e o fato de estarmos chegando a 100 mil mortos no país desgovernado por um genocida. 

sábado, 20 de junho de 2020

As possibilidades roubadas

Desde que me integrei às redes sociais e reencontrei virtualmente vários amigos de épocas distintas, tive consciência de que dificilmente voltaria a ver a maioria deles. Mas sempre existia uma possibilidade, mesmo que distante - ou seja, era possível, mesmo que improvável, que eu visse alguns desses amigos por alguma razão, ou fortuitamente, ou marcando mesmo um encontro. 
Agora, porém, me bate uma saudade de um futuro não vivido, quase uma melancolia, que é aquela tristeza do passado não experimentado - a pandemia nos roubou o futuro, as possibilidades todas. Mesmo quando ela passar, tudo será diferente, diminuto, amesquinhado. Difícil pensar em fazer planos, até mesmo sonhar. 
Claro que a memória humana tem limites que garantem nossa sobrevivência - talvez logo esqueçamos o horror disso tudo, assim que as coisas pareçam sob controle, e tentemos viver como antes. Mas não creio que será possível. Como viver normalmente com as desigualdades escancaradas e exacerbadas? Como voltar a pautar a vida no consumo?
Só sei que essa pandemia me encheu de saudade de gentes e lugares e coisas que talvez eu não veja mais. As possibilidades nos foram roubadas. Eu até pensava em operar algumas mudanças na vida, mas agora não vejo como. A incerteza é milhões de vezes pior que a espera porque não nos deixa enxergar os contornos do possível. O Gregório Duvivier publicou um lindo texto falando sobre a saudade de imaginar que o dia de amanhã seria melhor.
E seguimos assim, entre saudosos e desesperançados, como quem caminha na penumbra sem enxergar o fim do corredor. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Iniquidade é onde falta pão

Somente ontem aprendi que iniquidade é o oposto de equidade. Eu sempre associei a palavra à injustiça e à maldade, mas não sabia realmente o significado imediato. Ontem soube, por meio da aula de "Alimentação, educação e saúde" da pós-graduação, pelos textos e vídeos que tratam dos determinantes sociais da saúde (DSS). 
Em lugar de falar em desigualdade - porque desigualdade é um termo mais amplo, que pode valer para tratar de diferenças entre gêneros, por exemplo -, usa-se o termo iniquidade para tratar da não igualdade social, da ausência de direitos para todos. De repente, fez-se um clarão, tive uma epifania quanto ao abismo social em que vivemos. Mesmo eu, que morei tantos anos na periferia, não tenho ideia do que é não ter água nem saneamento básico, falta completa de comida, de escola, de dinheiro, de emprego.
Pessoalmente, sempre tive um incômodo enorme quanto à falta de comida e à possibilidade de alguém estar desprotegido - sem casa, passando frio, à mercê da violência, o que for. Pensar nisso me horroriza. Ainda vou colocar meu talento culinário, além da palavra, à disposição dos menos favorecidos.
No Brasil, normalizamos a iniquidade. Milhões não tem pão, o mínimo do mínimo da dignidade, da sobrevivência. Convivemos com o horror diário, desde que não esteja à nossa porta.
A atual pandemia, se é que pode ter trazido algo positivo, fez escancarar as iniquidades no Brasil e no mundo. O Ensaio sobre a cegueira tornado real, a luz insuportável sobre a verdade. 

sábado, 21 de março de 2020

O que aprenderemos com o coronavírus?

Nunca pensei, de fato, que viveria para ver uma pandemia em meu país. Mas ela veio.
O coronavírus tem uma disseminação rápida como nunca se viu; por isso, apesar da baixa letalidade (a menos que você seja diabético, cardiopata, asmático etc. ou tenha mais de 60 anos), é tão importante o isolamento social, para achatar a curva de crescimento de casos e evitar ao máximo sobrecarregar a já precária rede de atendimento à saúde. Se na Itália a gripe já fez tanto estrago, imagine aqui, imagine se chegar às periferias (e vai chegar).
Para além do fato de termos um presidente louco, egocêntrico e despreparado, algo preocupante é a cultura individualista do povo brasileiro. Teremos um grande teste à frente, o de colocar em primeiro plano o bem-estar coletivo para que menos indivíduos sejam afetados. Não acabar com os estoques de comida, álcool gel e máscaras, por exemplo, pensando que outras pessoas precisam do mesmo. Evitar as aglomerações, ficar em casa (para quem pode). Ser minimamente solidário ao não alastrar a doença por aí.
E manter a sanidade, não se fixando nos pensamentos inevitáveis de catástrofe e desemprego.
Talvez aprendamos a viver com menos, a viver junto, a nos revoltar contra a injustiça.

domingo, 1 de março de 2020

Padrão, criação e a arte de equilibrar pratos

Lido com textos muito antes de isso ter se tornado meu trabalho. Quando passei a ganhar a vida com revisão, preparação e, por fim, edição de textos, algo que me encantava era a possibilidade de tornar um texto ainda melhor, mais claro do que ele era. Tinha um quê de criação, ou melhor, de cocriação, colaboração, parceria mesmo.
Quando cheguei à editoria, recebi elogios pelo meu talento nato em cortar o desnecessário. Isso eu faço até hoje, e acredito que bem. Livro-me do supérfluo sem grandes traumas, sem maior apego. Porém, uma coisa que percebi ser ainda mais importante foi o estabelecimento de padrões a serem seguidos por toda a equipe editorial. Lembro-me de longas reuniões sobre os padrões a adotar, especialmente após o Novo Acordo Ortográfico, que ainda gera dúvidas e invenções. 
Hoje percebo como essas duas ações, criar e padronizar, tão importantes para quem lida com escrita, são discrepantes. É exaustivo seguir padrões, que podem mudar a cada momento - até eu decido mudá-los de uma prova para outra porque já não vejo sentido no anterior. Beira a loucura essa caça à "perfeição", essa corda bamba de certo e errado.
Descobri que não curto muito esse lance de aplicar padrões. Até porque ando revendo tanto a ideia de padrão na vida em geral que acho quase sempre dispensável. Por exemplo, se uma mulher mais velha deve ou não usar cabelos curtos, se as grisalhas devem pintar os cabelos, se as gordas não podem usar roupas justas ou estampas grandes - considero tudo uma grande bobagem, coisa de grandes empresas para fazer as mulheres consumirem. E como cada vez mais valorizo o ato criador, a criatividade, em que certo e errado podem coexistir no que se cria, os padrões perdem mais e mais sentido.
No meu caso, o trabalho de edição tem se limitado a produzir com o menor número de erros possível. Se acontece, é um deus nos acuda, uma Bic vazando sobre um vestido branco. Claro que queremos assegurar aos alunos que vão realizar exames que eles dominem os acertos, mas acho que ando querendo voltar a me encontrar com outra faceta da educação, menos preocupada com isso e mais com o viver, que tem erros e acertos mas açambarca respostas diversas. Talvez seja só preguiça.
O fato é que nunca simpatizei muito com o número circense de equilibrar pratos, e é isso que faço muito hoje em dia, no trabalho remunerado e no não remunerado. Nem mesmo o mágico me atrai muito. Tenho um espírito mais clown e trapezista, de improvisar e de (ainda que com um olho no chão) me lançar no vazio - telas muito mais apropriadas ao criar. 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Quando o racismo nos atinge

Nem eu mesma aguento mais falar sobre o fascismo alheio de cada dia. É um bombardeio de notícias ruins a cada momento, e parece que é só delas que falamos, ainda que uma ou outra coisa bacana, uma ação solidária ou justa aconteça aqui ou ali.
Embora sempre fique indignada com os casos de intolerância, que têm aumentado exponencialmente no contexto fascista em que vivemos, nunca pensei que era possível ficar ainda mais consternada quando acontecesse tão perto de mim. 
E aconteceu, com minha irmã caçula, que mora no Rio. Uma senhora, no metrô, começou a ofendê-la assim que a viu entrar no vagão, chamando-a de "chinesa porca" e outras baixarias. Fez comparações com os negros, que, "graças à escravidão", aprenderam a "ser limpos", ao contrário dos orientais. 
O que a tola e preconceituosa senhora não sabia é que minha irmã é extremamente inteligente, retadíssima, consciente de seus direitos, futura competente advogada e, honrando o fato de ser minha irmã, não ia deixar barato. Além de ter filmado boa parte das ofensas, ela descobriu nome e endereço da mulher e logo deu tratos à bola, ou seja, indiciou a criminosa. 
Eu me lembro de meu irmão mais velho, quando éramos adolescentes, sofrer com piadas pelo fato de ser descendente de orientais - havia só uma meia dúzia de mestiços na escola pública onde fizemos o ensino fundamental; depois eu e ele iríamos para escolas técnicas repletas de "gente como nós". Depois, durante muitos anos, esses episódios de racismo pareciam erradicados da minha vida familiar, mas não. Eles acabam de voltar, com muito mais fúria. 
É este o país em que temos vivido, com fascistas de todo tipo saltando do armário, atacando qualquer um que seja diferente deles, que tenha coragem de ser. Está liberado ser racista, homofóbico, preconceituoso, propagar o ódio. E é difícil pensar em pagar na mesma moeda, com a mesma raiva - porque não faz sentido para quem só quer viver em paz.
A atual epidemia de coronavírus que tomou uma cidade chinesa e tem se irradiado por outros países contribui para que a intolerância também se espalhe, como lama tóxica. Mais um pretexto para ações como a que minha irmã sofreu. 
Aliás, ela ter sido chamada genérica e preconceituosamente de chinesa e termos assistido há poucos dias o filme Assunto de família, sobre japoneses que vivem à margem do sistema aplicando pequenos golpes, são coisas que me fizeram pensar em como o outro é sempre um enigma, quando não uma ameaça. Mesmo para mim, descendente de orientais, é difícil pensar que existam japoneses "malandros", que vivam na pobreza, como as personagens do filme. Imagine, então, para os não descendentes e não dispostos a conhecer esse outro, que estereótipos mais podem surgir. 
Na verdade, prefiro não imaginar, para não perder a esperança e assim continuar a resistir. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Pelo direito de comprar as próprias calcinhas

Outro dia, conheci uma moça que se gabava de ter seu perfume e calcinhas escolhidos/comprados pelo marido. OK, acho sexy um presente-surpresa-convite desse tipo, mas como prática cotidiana me causa certa estranheza. Até porque ela disse que eram o perfume e as peças de que ELE gostava. Mas eu não tenho nada a ver com isso, né?
Daí aconteceu de eu cruzar com a moça e o tal marido. À primeira vista, um sujeito até simpático. Encantou-se por meu marido e logo pareciam velhos amigos. Dali a pouco começou a caçoar da esposa porque ela não sabia "nem fazer um miojo". Mas fazia bem pudim, embora o de outra pessoa que eles conheciam ainda fosse melhor que o dela. Percebi que ele não era bom em ouvir os outros, estava sempre tentando sobrepor sua fala à dos demais. Ela se mantinha submissa, interrompida por ele todo o tempo. Quando qualquer outra mulher falava, também, ele não dava nenhuma atenção. Embora só quisesse interagir com os homens presentes, falava aos brados de episódios de seriados e filmes da adolescência, e era essa sua conversa, um ruidoso solilóquio. 
Então ele resolveu contar, aos risos, como fez questão de ir a uma cerimônia de casamento de parentes da esposa usando jeans rasgados, só para sacanear a galera, que havia pedido trajes sóbrios. Claro que a única pessoa que ele conseguiu constranger foi a esposa. 
Fiquei observando aquela risada estéril. Pensei em como era possível que uma mulher deixasse que um homem como aquele escolhesse as calcinhas que ela deveria usar. Como era possível qualquer tesão? Se por menos que isso perdemos o élan, como ficar com alguém que, por uma pequena amostragem, já se mostra machista, misógino e infantil? 
Cada casal sabe de sua dinâmica, nosotros só fazemos mesmo pitacar. Mas me deu uma vontade grande de dizer a ela: sai dessa, ainda dá tempo, você é muito mais do que ele faz você acreditar. Me deu ganas de aconselhá-la a uma rodada de compras para si própria, para se fazer bonita para si, em primeiro lugar. Sentir-se bem com o que se é para, somente então, encontrar, se for o caso, alguém que dê valor ao que ela é. Não é fácil, mas menos que isso é inaceitável.