domingo, 3 de novembro de 2019

Pense o que quiser, discuta se puder, mostre quem você é

A palavra de ordem nacional é tosquice. Está em alta ser tacanho, tosco, brutamontes, desrespeitoso, intolerante, ignorante, psycho. Dizer e espalhar inverdades é o comum nos dias presentes.
Outro dia, uma senhorinha, por quem nutria até então certa simpatia, me acusou, com evidente ódio no coração e depois de afirmar que quem botou fogo na Amazônia e jogou óleo no Nordeste foram os esquerdistas, de "sua... petista!!!!". Ora, ela associa alguém que se preocupa com questões sociais, com os mais carentes etc. a ser petista. Não concordo com ela quanto à mera associação, embora tenha costumeiramente votado em candidatos do PT por ter sido por muito tempo a única opção viável à esquerda. Mas, no atual contexto, parece que isso virou até elogio, a depender de que lado você está. 
Sim, voto mais à esquerda sempre, defendo as causas sociais, uma sociedade com direitos iguais para todos os diferentes, para que a maioria, no mínimo, tenha acesso a comida, saúde, educação e a um modo digno de existência. Não penso só no meu próprio umbigo e cada vez mais me sinto ligada à luta, além da das mulheres, dos que também não tinham voz até outro dia, como negros e LGBT. Por isso me causou horror que um antigo vizinho, das quebradas e supostamente inteligente, tenha comentado um post meu dizendo que não via a hora da privatização da USP e de todas as instituições públicas e do consequente oba-oba com o dinheiro público. Como nem soube o que dizer diante do absurdo, dispara(ta)do sem qualquer tipo de argumento, nem respondi. 
Há uns meses, um amigo publicou no Facebook uma notícia sobre uma pesquisadora que teve de desistir de seu doutorado por conta dos cortes nos gastos das universidades públicas e nas bolsas de pesquisa pelo governo Bolsonaro. Uma seguidora (amiga? será possível?) respondeu à postagem dizendo que preferia que as universidades públicas todas fechassem a ver crianças morrendo na Venezuela. Daí pra frente, a conversa virou uma maluquice, com muitas exclamações e uso de caixa alta, e a eterna ladainha: e o PT? Tudo, menos o assunto de que tratava meu amigo - que teve uma paciência samaritana em lidar com a figura.
Isso acontece com cada vez mais frequência: defensores do absurdo, do que Eliane Brum chamou de autoverdade de um governo totalitário que ora nos governa. Parece que houve um emburrecimento, um embotamento das ideias em larguíssima escala, e agora é bonito assumir essa burrice. Quando se tenta argumentar - como eu, pedindo à senhorinha que não perdesse seu senso crítico, ou meu amigo explicando a realidade para a seguidora maluca -, essas pessoas embotadas ficam alucinadas, quase histéricas, grafam em caixa alta, falam aos brados. É realmente assustador o que tem acontecido, com tanta gente se limitando a repetir maluquices. Mas, no fundo, é altamente revelador de que nosso país é repleto de gente preconceituosa, machista e obviamente não solidária, que não suporta que os mais pobres saiam da prisão da desigualdade social que mantém as elites em sua zona de conforto. Trata-se de um pensamento retrógrado tão enraizado em nossa cultura nacional que até mesmo meu ex-vizinho, que pelo visto continua a viver nas franjas da sociedade, defende a ação daqueles que o esmagam. 
Apesar da importância inegável de se vivenciar um momento histórico tão efervescente (pelo menos em outros países da América Latina, enquanto aqui continuamos sedados em berço esplêndido), a desinteligência é sempre algo triste de se ver. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A morte do homem cordial

Foi Sergio Buarque de Holanda que, em 1936, fixou o conceito histórico do homem cordial como parte da formação brasileira e contribuição nacional à civilização. À primeira vista, pode parecer uma ótima qualidade, o ser cordial, mas Sergio Buarque logo esclarece que, diferente da típica polidez oriental, a cordialidade brasileira é mímica, imitação superficial que serve de ardil psicológico, para ganhar vantagens. Somada à cultura política brasileira, a cordialidade viria a se traduzir em nepotismo, compadrio, afetividade de fachada, falta de solidariedade e de empatia, valorização de interesses pessoais em detrimento dos coletivos. 
Assistimos na atualidade à derrocada do mito do homem cordial. Infelizmente, porém, ele tem dado lugar à sua versão mais tosca, arrogante, armado da ignorância mais atrevida e vociferante. Provavelmente, sempre esteve ali, à espreita, só esperando o momento oportuno de se manifestar sem as reservas do politicamente correto, tão execrado hoje. Hoje pode-se expressar todo o horror ao outro, ao pobre, ao preto, à mulher, ao homossexual, ao nordestino, sem reservas. Pode-se falar de tudo sem amarras e sem estudo, falar por falar, aos borbotões, criando um caudal de asneiras e assombrosas inverdades históricas. Um mar de lama, como o que tomou Mariana e Brumadinho, e promete avançar por muito mais. 
Vejo, abismada, pessoas conhecidas replicando maluquices sem nenhum pudor. Mas, se maluquices são, que pudor esperar? Pena que sejam do pior tipo: difamatórias, destrutivas. Tenho evitado debater nesse nível em que faltam coerência, organização mínima de ideias, fontes confiáveis. 
Permaneço na esperança de que prevaleçam no país os tipos éticos. Sei que existem, conheço alguns tantos, predominam entre meus amigos, graças aos céus. Mas ainda é preciso que se reúnam, que se fortaleçam e se façam ouvir em meio à algaravia e ao caos. Se o homem cordial, que era como nosso mito fundador, tem caminhado para seu fim (ou sua transformação em algo pior, por enquanto), é possível também que algo melhor surja desse apocalipse social e político.