quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Um contínuo fazer-se a si

"O senhor sabe... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão."
Sempre achei tão lindas essas palavras roseanas, e hoje sei que não são só literatura. Estamos mudando constantemente, embora haja algo de essencial no fundo que pouco se altera.
Agora acredito que seja assim, mas já fiquei muito confusa a esse respeito. Quando fui fazer terapia, entendi que devia ser quem era, e entrei em parafuso ao pensar que não conseguiria chegar a essa conclusão jamais, pois estava mudando sempre, o tempo todo deitando certezas fora. Parte dessa confusão talvez se devesse à minha necessidade de me agarrar a coisas concretas após experiências familiares brumosas. Mas como dar concretude ao cambiante ser humano? Tinha sempre a sensação de estar errada, de ter assumido uma persona em vez de viver minha verdadeira essência. Hoje penso que eu sou tudo isso ao mesmo tempo e que o melhor a fazer é relaxar diante de uma realidade tão líquida, de uma quase completa falta de controle.
Se não me fez fixar um modo de ser (o que provavelmente seria impossível), a terapia ao menos me levou a descobrir outras camadas, outros possíveis dentro de mim. Ajudava muito quando meu terapeuta dizia para eu ouvir meu coração - que, afinal, pode bater por coisas diferentes a cada dia. E tudo certo, pois seguir essa cadência é saber que se vive. E viver é essa transformação diária do humano de que fala Riobaldo em sua sabença sertaneja.
Poder fazer-se a si continuamente, e não ter que descobrir uma única verdade, isso é realmente tranquilizador.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Os perigos do viver

Viver está cada vez mais perigoso. Além da intolerância, violência, desastres climáticos, há os riscos comezinhos, como os malefícios do glúten, dos agrotóxicos, do café e do ovo (nem vou citar as gorduras e o açúcar, vilões há muito mais tempo). Até comprar roupa é perigoso, porque corremos o risco de alimentar a indústria do trabalho escravo. Pode ser que sempre tenha sido assim, mas agora as coisas têm sido escancaradas sob uma luz insuportavelmente clara.
De repente, nos damos conta de que não temos controle sobre nada, que no fundo tudo é produto de um grande acaso. Para Nietzsche, isso tinha a ver com ficar cara a cara com o trágico e, de preferência, sobreviver a ele. Dito de maneira mais simples, ter um choque de realidade. Descobrir que não há garantia de nada, mesmo que recebamos todas as garantias. Que, a bem da verdade, não é possível colocar a mão no fogo por ninguém, nem por nós mesmos. Porque tudo muda sempre, porque essa é a natureza da vida/realidade/mundo. Que a única coisa real é agora, que amanhã e a depender da memória dos envolvidos não será mais.
Mesmo assim, vivemos. Topamos o desafio. Alguns, nem consciência têm disso - sequer têm consciência, como Riobaldo, de que viver é naturalmente muito perigoso. Os que o sabem continuam caminhando até a beira do precipício, esperando a chegada do novo ano ainda que desconfiem de que ele será apenas continuação do que supostamente termina - sem possibilidade de previsão. Ainda assim, fazem planos e promessas, mesmo que desconfiem que nem sempre realizarão uns e outras. Se são corajosos ou se mentem, sabem que é assim que se faz.
Porque, como nada é previsível, a beira do precipício pode ser não um salto para a inevitável morte, mas uma bela plataforma de voo para o desconhecido que é viver.