quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Estrangeira

Filha e neta de nordestinos que sou, sempre me incomodei com as "brincadeiras" voltadas aos nordestinos, especialmente aos baianos - o que não quer dizer que eu não as tenha feito, quando criança, seguindo a onda dos amiguinhos, embora com um remorso lá no fundo.
Em São Paulo, o estado com maior número de baianos fora da Bahia e maior número de nordestinos do país, isso é e sempre foi corriqueiro. Baiano é sinônimo de nordestino, baianada é sinônimo de burrice, de barbeiragem. Por extensão, todo nordestino seria afeito a barbeiragens. Não bastasse o horror, a indecência de se dizer isso de toda e qualquer pessoa, seja quem for e de onde for, ainda por cima é uma afirmação injusta com quem trabalha muito, muitas vezes de sol a sol, muitas vezes em condições precárias e exploratórias. Como todo e qualquer preconceito, não faz nenhum sentido. Ou melhor, é, em si, como todo e qualquer preconceito, um exemplo de barbeiragem, de falta de destreza e inteligência.
Aí eu me mudei para a Bahia. De cara, houve duas reações à minha chegada: a gozação por eu ser paulista (sinônimo de ser caipira, não descolado, ou fresco, metido, de só viver para o trabalho ou sempre reclamando de tudo) e uma autocrítica baiana antecipada (antes que a paulista metida criticasse os costumes locais, os próprios baianos faziam isso). Ambas as reações, nada agradáveis. A primeira foi se tornando menos comum, mas a segunda persiste, o que me entristece.
Pela primeira vez, estive do lado de quem é julgado por sua suposta cultura, claro que sem o mesmo peso dos nordestinos fora de seus estados. Porque, de qualquer modo, embora "paulista", eu sou branca (um pouco amarela, é verdade) numa terra de maioria negra e parda. Aqui as divisões étnico-econômicas são muito evidentes. Quem "serve" é normalmente negro ou pardo. Também não vejo muita diversidade nas relações - lembro como me surpreendi ao conhecer os amigos do marido: todos brancos, altos, bonitos, hetero e bem nutridos. Eu, que venho de uma cidade caótica e multicultural, que tenho amigos de toda cor, credo, formação, classe social, orientação sexual, fiquei um pouco espantada. Nunca tinha estado em um grupo tão homogêneo, a nata da sociedade soteropolitana.
Aqui e ali, vejo que agradaria às pessoas que eu me tornasse mais baiana, como uma aceitação plena do novo locus. Mas aceitar o novo locus e me encantar com ele não significa deixar de ser quem sou - brasileira, filha de nordestino e nissei, paulista.
O fato fatídico é que sou estrangeira, talvez sempre seja, apesar da minha facilidade de adequação às situações. Não acho isso nada ruim - por sê-lo é que posso perceber as nuances das relações, da cultura local, e me enternecer com situações como a de ir à Avenida Sete comprar coisas para casa e as vendedoras se despedirem de mim assim: "Tchau, meu amor. Vai com Deus". Coisa mais linda não há, e eu vejo, e sei, porque, vinda de fora, estou dentro.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Quase dois irmãos: merecimismo e meritocracia

Outro dia falei da meritocracia, essa falácia travestida de recompensa aos desvalidos esforçados. Hoje, li um texto da sempre ótima Eliane Brum sobre os filhos de classe média que, mesmo tão "preparados" materialmente para a vida, estão completamente despreparados para a vida. Tudo porque, segundo Brum, os pais os têm enganado com outra falácia, a de que merecem tudo. Assim, sem esforço, graciosamente, por uma suposta genialidade. Não lhes ensinam a lidar com a frustração, com a falta, com a raiva. Seria quase o oposto da meritocracia, se não provocasse males similares. Eu batizei esse mal irmão da meritocracia de merecimismo (se é que alguém já não o chamou assim).
Enquanto a meritocracia desvia a atenção de todos da desigualdade social, o merecimismo desvia o olhar dos problemas da vida real que podem acometer os mais abastados.
Tenho visto exemplos de merecimismo no cotidiano, tanto em jovens que fazem as coisas pela metade, numa espécie de dormência física, como em crianças que ficam transtornadas por não terem alguma coisa. A fonte do mal é a mesma: não terem aprendido com seus pais que nem sempre terão tudo à mão, que nem sempre haverá alguém que faça as coisas por eles. Quando caírem na real - o mundo e o contato com a diversidade, e as consequentes respostas não aprendidas em casa -, como vão reagir? Com raiva, batendo o pé? Alguns talvez sejam mais agressivos, recorram à violência; outros podem até entrar em depressão. O mais terrível é perceber que dentro dessa bolha criada em família conceitos como civilidade, liberdade e justiça são necessariamente distorcidos - por exemplo, não ser justo que o outro tenha e eu não, não por uma questão de injustiça social, mas porque o outro tem culpa na minha falta. Algo que beira o conceito de inveja, em que não quero que o outro tenha algo que não tenho, como se o fato de ele não ter abrandasse a minha falta. Claro: não abranda. E isso só cria mais amargura, mais inveja, mais violências, grandes e pequenas.
O filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, traz esses dois irmãos conceituais numa chave menos óbvia, mas possível: a menina pobre, filha da empregada, batalha por uma vaga na universidade pública, e vence. Por seu talento, por seu esforço, e também pelo esforço da mãe, que lhe garantiu condições mínimas para que estudasse, além de ter aprendido com um professor que ela não deveria se sentir inferior a ninguém. Já o filho da patroa, que teve acesso a tudo de melhor, não consegue seu lugar ao sol, e fica deprimido com a derrota inesperada, absurda. O que faz sua mãe? Dá a ele uma temporada no exterior, para fazer um curso livre em Harvard, por um ano. Não lhe ensina a lidar com a frustração - varre a malvada para debaixo do tapete. Na verdade, não ensina nada, oculta a verdade, não concede um pouco de luz ao filho - ela, que lhe deu à luz.
Sob as nuvens da meritocracia e do merecimismo, vivemos tempos sombrios.