terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Ariadne, coerência e reinvenção

Minha amiga Tamara, ao comentar meu ensaio bordadístico registrado no Nem guerê nem pipoca, me fez perceber que esqueci de falar de Ariadne quando tratei de fios, bordados e narrativas. Na verdade, até pensei nela, mas no fundo devo ter achado que três vozes acabariam gerando mais ruído que conversa. Também por isso aqui vai um post só para Ariadne.
Digo "também" porque não se trata de uma simples "repescagem", bem longe disso. Mesmo não tendo uma voz como a de Sherazade, narradora nata, Ariadne tem outras qualidades, igualmente importantes.
Pensei primeiro em atribuir ao mito a perseverança, ao lembrar o desenrolar do fio de Ariadne que ajudou Teseu a percorrer o labirinto do Minotauro. Um passo após outro para poder chegar (así se hace camino) - e também poder voltar sobre os próprios passos. Nisso talvez residisse alguma semelhança com o fazer-desfazer de Penélope, à espera de Ulisses. Mas daí me lembrei da contribuição fundamental do mito - o fio de Ariadne se refere a todo caminho trilhado para a solução de um problema. Isso não seria possível sem coesão, sem o contínuo simbolizado no fio tecido por ela. Por extensão de sentido: sem coerência, clareza de princípios.
Além disso, conhecer os passos do caminho possibilita voltar atrás quando se chega a uma conclusão equivocada (no labirinto do Minotauro e da vida). Saber de onde se vem ajuda a saber aonde se chegará - e a retornar sempre que necessário. Reinventar-se, pois mudar também faz parte da caminhada (às vezes até deixando um heroico Teseu por um festivo Dionísio). Talvez não por acaso a "patrona" das fiandeiras seja Atena, deusa da sabedoria... 
Gosto de Ariadne. Gosto de pensar que todos os que têm coerência de princípios - homens e mulheres - guardam algo dela. Tecem o fio da próprio existência, e com ele podem enfrentar os mais tortuosos caminhos, lançar-se à verdadeira aventura da vida, sem se perder de si mesmos.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Penélopes, Sherazades, bordados, narrativas

Um dia desses, não me perguntem como, cismei em bordar. Talvez tenha visto em algum lugar alguém bordando, sei lá. A verdade é que nunca bordei. A pergunta clássica a seguir seria "por que isso agora?" Nada a ver com o suave e sofisticado sumiê com que andei flertando. Mas, para mim, de algum modo, tudo a ver com a narrativa. Pensei em bordar para contar histórias, imprimindo-as, tatuando-as na pele que se insinua no tecido. 
A narrativa sempre me encantou, antes mesmo de aprender a ler. Não por acaso na época do ginásio (atual Ensino Fundamental II) vivi o papel de um caipira contador de histórias, com sotaque e chapéu, o mais perto que cheguei da arte dramática. Não à toa gosto de quando em vez rever e reouvir Forrest Gump e Peixe Grande. Gosto dos narradores viajantes, que costumam ter muito o que contar, seja verdade ou não.
O maior de todos os narradores, porém, não é um viajante (aquilo que conta, portanto, deve vir da imaginação, e não da memória). Ainda por cima, é mulher: Sherazade. Mesmo com esses "senões", tinha uma história na ponta da língua para cada noite passada com o sultão. Rubem Alves, em uma de suas crônicas, diz a respeito dessa narradora: "quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer."
Imagino Sherazade contando suas histórias como quem tece um bordado - um ponto de cada vez, cada um contribuindo para formar uma imagem, como uma palavra sucede outra na narrativa e faz sonhar o ouvinte com aquilo que vê somente por artes da imaginação. O sultão sendo lentamente enredado na trama tecida pela narradora. A palavra que garantia a sobrevivência de Sherazade é a mesma que faz o amor viver, reviver, reinventar-se, avançando um passo a cada dia no complexo desenho criado pelos amantes.
E assim, por obra do bordado, como não me lembrar de outra personagem feminina, Penélope, que tece, desfaz e refaz à espera do marido Ulisses?
Certamente, Ulisses, um viajante nato (herói, pois não?), teria muito mais o que contar que sua pacata e bela esposa. Ela só tece. Mas é como se, na urdidura feita e refeita para ganhar tempo e recusar outros pretendentes, Penélope ousasse começar do zero para reafirmar seu amor. Diferentemente de Sherazade, que retoma a história do ponto mesmo em que parou ("prossigamos", parece dizer diante de um deserto infinito ou das montanhas insondáveis da Pérsia). Para nós pode parecer uma tremenda perda de tempo, fazer e desfazer um trabalho (um retrabalho, não é assim que diríamos?), quase um "Dia da Marmota" (como no filme Feitiço do tempo, com Bill Murray) entre teares. Além disso, Penélope, embora rainha de Ítaca, é como uma das "Mulheres de Atenas" cantadas por Chico: submissa, leal, à espera de seu marido-amante-guerreiro. No fundo, porém, como Sherazade, ela combate a morte bravamente a cada dia. Não prossegue até que Ulisses retorne, como se pudesse congelar o tempo ao desfazer à noite o trabalho de um dia inteiro. Como Sherazade, Penélope não permite que o amor morra.
E o que fica desse enredamento de ideias e personagens? Que para bordar, narrar e amar, igualmente, há que ter talento, paciência e coragem para retomadas e recomeços diários. Não perder o fio, entendem? Não perder o fio.