terça-feira, 9 de novembro de 2010

Limites da liberdade

A liberdade tem limites. Tão claros, tão facilmente reconhecíveis que seu desconhecimento só pode estarrecer. "Liberdade" que fere, escarnece, ofende, mata não é liberdade, nem aqui, nem em lugar nenhum. Torna-se outra coisa qualquer, arma na mão de covardes, que a empunham em nome de uma suposta democracia, que lhes dá direito a fazer e dizer o que der na telha.
Assim é com a liberdade de expressão, toda retorcida por esse discurso pseudodemocrático que nos assombra. É o que "permite" a uma estudante de Direito de São Paulo escancarar na rede seu preconceito contra nordestinos - que tipo de profissional se espera de uma pessoa como essa? O disparate não poderia ser maior, em se tratando de alguém que deveria defender (ou pelo menos respeitar) os direitos humanos.
Hoje é possível dizer o que se quer em nome da liberdade de expressão. Quem se sentir ofendido que vá processar - um direito seu - o outro por injúria e difamação, que vá cobrar um tímido direito de resposta na TV. Se ao menos o nosso judiciário fosse tão ágil quanto a língua ferina de tantos! De novo, lá vem a impunidade acarinhar seus afilhados - difamadores, corruptos e covardes.
Podemos ser quem quisermos, mas não fazer ou dizer tudo que quisermos, sobretudo se isso tem consequências no âmbito coletivo (excluídos, obviamente, os moralismos, os incômodos com a existência do outro e toda sorte de coisa inútil). Para "regular" os comportamentos é que existe a ética; na falta dela, existe a lei. Se ambas faltarem, resta a voz dos inconformados. Se tudo isso faltar, é melhor pedirmos para apagarem a luz.

domingo, 25 de julho de 2010

Ser ou não ser positivo

Eu tinha quinze anos quando ouvi da esposa de um primo, uma pessoa que eu havia acabado de conhecer, que ela admirava meu jeito “positivo” de ser. Na hora não entendi o que isso significava, mas percebi que se tratava de uma qualidade – pelo menos do ponto de vista dela, que devia ter vislumbrado em mim uma semelhante.
Essa questão de ponto de vista é fundamental, porque a positividade não é um atributo tão admirado assim. Ela provoca muitos melindres, isso porque o indivíduo de comportamento positivo, segundo o Houaiss, “não tergiversa”; é “objetivo, prático, resoluto”. De fato, em alguns casos, a depender da Lua, do humor e dos vizinhos, isso pode descambar numa franqueza algo assustadora. Mas não é, absolutamente, sinônimo de rudeza, e sim de uma grande sinceridade com os outros e consigo – do que, claro, decorre um preço alto a se pagar.
Nesses tempos de pouca honestidade, seja em nome do proveito próprio, seja por uma convenção social deturpada, julga-se sem apelação quem resolva simplesmente discordar, expressar sua instatisfação ou dizer a verdade. Discordar não quer dizer necessariamente desagregar: também faz parte do diálogo, da crítica, da construção de algo novo, de um consenso mais rico. De outro lado, muitas vezes concordar é apenas ecoar a ideia do outro, sem maiores reflexões – assentir e consentir em tudo, ao menos externamente, só para não se cansar demais.
Digo tudo isso porque, mesmo correndo o risco de ser tachada de inconveniente, continuo a arrogar meu direito de ter ideias próprias e de não me curvar a convenções sociais com as quais não concorde, de duvidar do longamente estabelecido, das tradições inventadas. Mais que tudo, defendo meu direito a uma consciência tranquila, que me permite caminhar pelo mundo com uma bagagem mais leve que a de muita gente...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Repeteco de um samba

Dia desses, estava me lembrando de um projeto que fiz para um programa cultural do Estado e que deveria ser desenvolvido em duas ONGs. Lembrei-me dele porque estava pensando em como gosto de desenvolver projetos. Esse, no entanto, foi um fiasco (fosse pela minha expectativa, fosse pelo despreparo das ONGs, fosse pela imposição do Estado de projetos pouco pertinentes ao contexto). Cheguei a comentá-lo, e seus efeitos sobre mim, em Esse samba no escuro, que reproduzo mais abaixo.
Hoje, com algum distanciamento, vejo como uma situação difícil, que poderia ser um veneno para a autoestima, na verdade consolida em mim algumas crenças. No caso mencionado, uma crença relativa à educação, mas também acerca da vida: a de que qualquer aventura tem que ser boa para todos os envolvidos.
Repetitiva, eu? Sempre que vale a pena.


Esse samba no escuro

Quem conhece minimamente a obra de Chico Buarque logo vai buscar em sua memória musical esse verso, da canção Apesar de você, ícone da música brasileira de protesto dos anos 70. Estive cantando-a nos últimos dias, de novo emocionada com o coro de inconformados que repetem: “Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia”. Com tamanha esperança, jogam na cara do verdugo toda espécie de acusação poética: foi ele que inventou o pecado, a tristeza, “toda escuridão” – dá pra imaginar o que é isso? O Senhor do Escuro, Sauron, criação de Tolkien, ficaria no chinelo diante do poder de “obscurecimento” dos senhores dos anos de chumbo no Brasil.
No entanto, o que mais me toca na canção não é esse terror experimentado, mas exatamente a confiança no futuro, apesar de. Imagino os cantantes perseguindo o carrasco pelas ruas, alegremente, desafiando-o a esconder o dia que raia, a água nova que brota, o jardim florescente, o galo profético. O amor. Cobrando com juros o povo falando de lado, olhando pro chão. E o samba lançado no escuro, à espera de vir à luz, de sua apoteose, que – diz a canção – virá com certeza.
Creio que temos vivido um pouco desse jeito, como quem samba no escuro. Por mais que as pessoas falem aos brados, com uma suposta liberdade, que sequer existia nos anos da ditadura, não ouvem umas às outras. Que canção faz sentido no meio de um bando de surdos? Toda música recolhe-se à escuridão quando perde seu sentido de comunhão – porque só faz sentido se é ouvida, se reúne pessoas em torno de si, se há quem a cante ou cantarole. Não existe no vazio.
Como nós. Não existimos se não nos comunicamos com outros, porque só existimos com relação a. E não há nada mais cansativo do que tentar se fazer ouvir. Pessoalmente, entre meus princípios está o de não discutir com bêbados, loucos e pessoas que gritam – qualidades que, claro, podem se reunir num só ser. Não por querer julgá-los, mas simplesmente porque não há comunicação possível nesses casos, só escuridão, ou, tanto pior, o eco de suas falas destemperadas quebrando-se no vazio. E nada se constrói a partir disso. Nesses casos, faço mais a linha do “vou cantar noutro lugar”, pra lembrar outra canção de protesto da época. Será covardia? Preguiça? Juro que pode ser. Também.
Só sei que toda essa reflexão da não comunicação, da escuridão relacional em que vivemos foi acarretada não pelo contato com adultos, mas pelas minhas tentativas de conversa com meus pequenos alunos de oito e nove anos de idade. Talvez falem tão alto (alguns gritam o tempo todo) porque só assim se sabem ouvidos; imagino que em suas casas só se saiba falar desse jeito. Mas o resultado é que ninguém ouve ninguém. Uma vez, vi um espetáculo de dança de um grupo francês que era uma representação exata da minha sala de aula – pessoas andando de um lado pro outro, cada uma falando uma língua, pensando alto, conversando consigo mesma, sem nunca se encontrarem. Claro que, vindo de um espetáculo, isso parece muito sofisticado e interessante, e ao final aplaudi de pé, com entusiasmo. No caso da sala de aula que beira a histeria, não tive outra opção senão deixar a plateia.
Confesso que fiz isso. Pela primeira vez em tantos anos de atuação como educadora. Percebi, de repente, que, numa época em que o que se fala não faz tanto sentido, somente uma ação pragmática teria efeito. Mas não porque queira fazer disso uma prática costumeira: imagine se os educadores de todo o Brasil resolvessem simplesmente abandonar a arena (porque é disso que se trata, em muitos casos) ao primeiro sinal de histeria coletiva? Não – acho que foi um protesto puro e simples. Porque percebi, de novo de repente (tenho essas epifanias de quando em vez), que também posso dizer não. Dizer não ao estado de coisas que vivemos, às condições precárias do ensino, à deseducação, à falta de respeito, ao voluntarismo puro e simples (“quero porque quero”). Porque pretendo continuar gostando do que faço, fazendo aquilo de que gosto. E as pessoas (alunos, coordenadores de instituições etc.) também têm que saber o que pensamos – não podemos posar de heróis, santos ou mártires. Temos que trazer à luz o porquê das nossas ações e escolhas, não sofrermos passivamente com o estado das coisas. Ou nada faz sentido.
Um sistema político pode ter um ciclo de vida, um prazo de validade. E a confiança nessa descontinuidade, que cedo ou tarde virá, é o que vejo em Apesar de você. Mas acho que o ser humano segue outra trajetória, mais complexa – e não creio que possa fingir que educo alguém apesar de ele insistir em não me ouvir, apesar de ele insistir em ser grosseiro com os colegas. Pensar que isso é possível, sem que tentemos combater aquilo que fere a todos (e até mesmo revendo as escolhas feitas), é continuar sambando no escuro.

12 de novembro de 2007

domingo, 27 de junho de 2010

A arrogância faz "crescer" os pequenos

Ela está em toda parte. Diferentemente da inveja, seu pecado-irmão, adora aparecer. E quando o faz, ajuda a avultar os espíritos menores, apequenados.
A arrogância é típica dos inseguros, por mais que faça crer o contrário. Basta que eles suponham um pouco mais de saber e, pronto, logo se colocam a desancar quem lhes parece inferior. Muitas vezes, trata-se de uma espécie de vingança de quem se sentiu diminuído algum dia. Quando se une à inveja, então, é capaz de estabelecer o caos nas relações humanas, por meio de atitudes persecutórias e inflexíveis. Não se toleram a fala do outro, a escrita do outro, o trajar do outro, a canção do outro, a existência do outro.
Democrática porém, a arrogância, também conhecida como soberba, não escolhe profissão, ocasião ou classe social. Encontramo-la nos consultórios médicos, escolas, escritórios, redações, bares e ruas.
O grande perigo apresentado por ela é sua aparente normalidade. Oculta sob a crítica (que, no mais das vezes, pode ser saudável), só faz atestar nossa frágil condição de animais superiores que se ameaçam mutuamente, todo o tempo.

domingo, 13 de junho de 2010

Bizarras cenas hospitalares

Parece que as vocações estão mesmo (ou sempre) em pauta, inclusive como pano de fundo.
Na última sexta, estive na Santa Casa de Misericórdia para uma consulta de emergência com o clínico geral, já que a tosse canina teimava em não me deixar. Como queria descartar rapidamente a hipótese de uma pneumonia, lá fui eu, pronta para encarar horas de espera, mesmo em se tratando de um espaço reservado para "conveniados", e não reles mortais desprovidos de plano de saúde.
Que bom é ter saúde! Somente nessas horas de longa espera, burocracia e descaso é que nos damos conta de como ela é importante. Bom, esperei quatro horas para saber que não tinha pneumonia. E assisti a várias cenas bizarras. Primeiro, na sala de inaloterapia (lindo nome), uma enfermeira fez jorrar sangue do braço de uma paciente; uma outra profissional de saúde, provavelmente desafeto seu, disse aos presentes, assim que ela saiu para buscar mais gaze, que ela vivia dizendo que "nunca fazia besteira"; numa segunda saída da perfuradora de braços, incitou a paciente a reclamar junto à direção do hospital. E eu ali, com meu inalador, vendo tudo aquilo, literalmente sem respirar.
Depois de assistir por um bom tempo ao footing dos médicos, que pareciam não ter nada para fazer, embora houvesse cerca de 40 pessoas no local, vi o diretor do hospital chegando ligeiro, abrindo portas de consultórios e flagrando dois médicos no maior bate-papo num deles, a portas prudentemente fechadas. Parecia uma atitude louvável, colocar todo mundo para trabalhar, não fosse a grande coincidência, minutos depois, da chegada da equipe da Rede Globo, que se apropriou de um dos poucos consultórios para fazer dele uma locação, onde teve lugar uma entrevista para um dos noticiários da emissora.
Por fim, de posse dos exames de raio-X, quando fui atendida pela médica (que não era a mesma do primeiro atendimento, pois seu turno há muito já acabara), recebi a notícia de que não se tratava de pneumonia e também a receita de uma medicação que parece não existir. Explico: ela receitou fluimicil, o nome usado pelos genéricos da acetilcisteína, numa dosagem e formato que não encontrei em laboratório nenhum - comprimidos de 200 mg. Até onde pude ver, só há na forma de xarope, solução injetável e granulado. Claro, como não sou nenhuma especialista, pode haver alguma forma rara do medicamento, que poucos, como a doutora que me receitou, conhecem. Quem sabe?
De qualquer modo, saí de lá com a pergunta: o que será que levou essas pessoas em especial a escolherem a carreira médica? Amor pela humanidade é uma hipótese que, de saída, eu descartaria (com exceção de um único médico que vi ali, atendendo de forma incessante e paciente). Porque, com um pouco mais de capricho no roteiro, gritos nos corredores e maquiagem adequada, isso poderia ser um filme de terror. Ou, pelo menos, um episódio de CSI.

sábado, 12 de junho de 2010

O vivido de cada um

Uma noite dessas, em uma bela conversa com um amigo de longa data, ouvi-o falar das grandes mudanças que estava operando em sua vida, mesmo tendo construído uma carreira sólida e para lá de respeitável. Tudo porque sua alma está cobrando mais espaço, novos voos e paisagens.
Em nossa conversa, ele me fez lembrar de um texto que escrevi há quase três anos, que conflui com minhas últimas postagens e que resolvi agora publicar aqui, em homenagem a esse recomeço. E cá fico eu, contente de compartilhar da nova fase, torcendo sempre pelo seu sucesso, aonde for.

Toda alma de artista quer partir

Ainda pensando na propriedade das letras de Chico Buarque, detenho-me sempre nestes versos de Na carreira (canção composta com Edu Lobo para o espetáculo O grande circo místico, do Balé Guaíra): “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ A arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. É a mais autêntica proclamação de liberdade: o artista não se prende às amarras institucionais, a inquietude de seu espírito leva-o a se lançar no desconhecido, corajosamente, amorosamente.
Longe de me achar um esprit artistique, lembro-me, contudo, de quando deixei um trabalho estável, de longa data, bem remunerado para a época, para me aventurar em um território pouco conhecido; o espanto das pessoas foi grande, creio que com razão. O motivo da mudança era simples, embora nem sempre bem compreendido por aqueles que se espantavam – achava que não tinha mais a contribuir com aquele lugar, nem a aprender. E parti.
Andei por muitos lugares, como se participasse de uma trupe de mambembes, vivendo durante anos com trabalhos os mais diversos, porque havia escolhido justamente um trilhar de oportunidades voláteis. Como outros amigos que seguiram a mesma trajetória, fui inventando a cada passo o caminho a percorrer. Foram anos assim.
Quando resolvi deixar a casa de minha família, também fiz algo parecido. Não tinha um trabalho fixo, mas tinha amigos e, portanto, guarida (agora é que me ocorre que amigos são imponentes e acolhedores como casas). Depois fui fazer meu vôo solo e tinha menos condições ainda de me manter – dessa vez, sozinha e desempregada. Muitas dificuldades depois, ainda insisti nos trabalhos autônomos. E fui levando, levando...
Às vezes, voar por longas distâncias cansa. E é preciso pousar em algum lugar para retomar o fôlego. Por isso é que passei por algumas instituições para respirar – e quase sufoquei. Passarinho desgovernado, dei várias topadas na minha fuga em direção ao azul da manhã. E mesmo assim me espanta ouvir que sou “cigana”. Acho engraçado, poético.
Toda vez que resolvo pousar ou partir, sempre levo em conta o que diz minha alma – se ela está apertada, solta, feliz. Coisas da intuição, que cada vez mais aprendo a respeitar. Também sinto a direção dos ventos (aliás, uma das coisas de que mais gosto na vida é sentir o cheiro do vento que precede a chuva, algo que me devolve à natureza), traço planos de vôo, de caminhada, de navegação. O que não quer dizer que não continue batendo de frente com outras vontades, já que caminhar junto nem sempre é possível – há quem queira nos atropelar, ultrapassar etc. Mas nada disso invalida a viagem; afinal, a paisagem é mesmo linda.
Não ter pouso pode ser entendido como desassossego. Mas também pode significar inconformismo. Tudo depende do estado da nossa alma, de como queremos ver a realidade. Tem gente que insiste em ser infeliz onde quer que se encontre, por mais estável que seja sua vida. É como se a infelicidade fizesse parte de sua bagagem como algo imprescindível, a escova de dentes, por exemplo. Claro que o desassossego pode levar a criações maravilhosas, e aí está Pessoa que não me deixa mentir.
Tão importante como saber a forma de chegar é saber a hora de partir – de uma festa, de uma situação, de um relacionamento. Por mais difícil que seja, é uma forma elegante de saber dizer “não”, “c'est fini”, “acabou”. E é esse respeito pelo tempo de uma coisa que faz que ela se torne eterna, que nunca morra, mesmo já tendo acabado. Lembranças, amigos, amores, experiências: ninguém pode nos roubar o vivido.
E por isso podemos continuar por aí, partindo, voltando, tendo o mundo todo para nos apaixonar...


13 de novembro de 2007

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Em busca da vocação perdida

Todo mundo devia fazer apenas aquilo que lhe apraz quando se trata de escolher uma função social. Buscar a verdadeira vocação. Não como uma voz soprando em nossos ouvidos, mas algo mais concreto e honesto, parte de nós mesmos.
Quando o que fazemos cotidianamente parece pesar nos ombros, alguma coisa está errada. E não adianta só reclamar, empapuçando os ouvintes circundantes. É melhor perguntar a si mesmo o que deve ser feito e estar preparado para uma resposta sincera, mesmo que seja a de que se deve começar tudo de novo. Eu, por exemplo, descobri há algum tempo que não tenho a menor vocação para cobrar dos outros aquilo que é obviamente seu dever - é o tipo de coisa que me agasta. Talvez também por isso não sirva para ser chefe.
Ser feliz, de qualquer modo, é muito mais fácil do que parece. Praticamente matemático: se todo mundo resolver fazer bem o que escolheu fazer de melhor, sem prejuízo alheio, tudo será melhor. Não é uma maravilha? Não mais aguentar cara feia de atendentes de supermercado ou lojas, nem as lamentações eternas de quem não faz nada para mudar o modus operandi e o modus vivendi. Quem sabe chefes melhores, melhores subordinados, nenhuma vítima.

sábado, 15 de maio de 2010

Essa tal sociabilidade

Ai, como é difícil o exercício da sociabilidade! Esse tal “domínio das regras de convivência”, para ficar apenas em uma acepção, pode ser extremamente cansativo.
Embora o exercício social envolva todos os componentes do grupo, às pessoas ditas “mais sociáveis” cabe normalmente a pesada tarefa de observar se todos ao redor estão bem acomodados e satisfeitos. Um pouco mais, e isso vira uma relação de mão única, uma obrigação dos mais descolados. Eles não podem ter mau humor, não podem ser irônicos nem querer tomar ar sozinhos. Afinal, eles são os responsáveis pela felicidade geral. Os menos sociáveis, assim, não precisam se esforçar, mas apenas viver à sombra do guarda-sol alheio e de vez em quando repetir uma piada que ouviram. Ou seja, ser sociável pode ser muito chato quando isso cabe a uns gatos pingados, porque o grupo perdeu a dimensão da sociabilidade (que é uma dimensão sempre coletiva) propriamente dita.
Isso tudo porque existe uma forte tendência humana à acomodação. É mais fácil esperar que alguém faça por nós do que fazermos nós mesmos. Um exemplo? O colega de escritório proativo resolve um dia oferecer-se para fazer o café. Uma vez, duas vezes, três: logo, ele será o fazedor oficial de café, e que não ouse se indispor à sua condição recém-adquirida. A gentileza de um, em lugar de ser imitada, é engolida pelo comodismo dos outros.
Imagine, então, o rumo desta prosa se aqui levarmos em conta o que diz Flavio Gikovate sobre a divisão das pessoas em generosas, egoístas e justas. Obviamente, a acomodação maior às situações se dá entre generosos e egoístas, tipos que se procuram mutuamente grande parte do tempo e que são, na verdade, muito parecidos – o egoísta alimenta a vaidade do generoso, e vice-versa. Os justos são os menos acomodados, porque vivem na corda bamba, a se desviar dos hábitos nocivos dos dois outros grupos, procurando tratar a todos com isonomia, sem posar de bonzinhos. São, por isso mesmo, mais raros e até malvistos por aí.
Sim, claro: somos todos diferentes, e que bom é isso – celebremos a diversidade! Seria horrível um mundo onde todos fossem iguais, quisessem fazer as mesmas coisas, executar as mesmas tarefas, falar ao mesmo tempo. O problema é que o sermos tão diferentes não nos exime de socialmente termos de desenvolver hábitos comuns pelo bem da coletividade e para sobrevivermos uns aos outros (a famigerada ética, que tem sido, infelizmente, substituída pelo politicamente correto). A gentileza (que é diferente da generosidade supracitada) é um bom começo. Não sermos autorreferenciais o tempo todo, uma fórmula mágica. Dela advém não esperarmos que os outros façam tudo por nós, que nos carreguem no colo, que não vivam sem nossa presença. Melhor ainda seria entender que a alteridade é exatamente aceitar que existe um outro, distinto de nós, e não que sejamos um só. Isso evitaria confusões, melindres e sofrimentos desnecessários.

15 de maio de 2010

domingo, 21 de março de 2010

"Os passageiros", peça de Flavio Goldman

Ontem fui assistir à montagem de uma peça de meu amigo Flavio Goldman. Os passageiros foi encenada no Sesc Paulista, sob direção de Francisco Medeiros. Fica em cartaz até 28 demarço – o que é uma pena, pois merecia ser vista por muitas pessoas mais.
No cenário minimalista (apenas parte de um elevador, que vai ganhando outras partes, à medida que a trama avança), um terapeuta e seu paciente se encontram. A súbita pane no elevador leva a uma pane relacional, entre ambos e de cada um consigo, o que Flavio chamará apropriadamente de morte das personagens.
A tensão crescente deve-se, como sempre, à revelação de verdades. Mas essas verdades só podem ser reveladas com a alternância de simulacros, de imposturas. Quando deixei o Sesc, ainda absorvendo aquelas falas, veio-me à mente a excelente obra Amphitryon, de Ignacio Padilla, que já comentei neste blog ser um dos melhores livros que já li. Em comum com a peça, verdades e inverdades compõem no livro do autor mexicano um jogo de sombras, o que, via de regra, exige maestria.
Também em comum com o texto de Padilla, a peça de Flavio apresenta o elemento surpresa, quando pensávamos que já tínhamos “entendido tudo” do conflito – porque a impostura, afinal, habita a maioria dos conflitos cotidianos. Descobrir, como o paciente Ricardo, que não conhecíamos a verdade nem tínhamos o controle da situação (o que, muitas vezes, é a mesma coisa) tira-nos o chão. Um santo remédio para a empáfia e a descomunicação que nos assolam.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Os olhos de Saramago

Um homem perde a visão em meio ao trânsito de uma cidade qualquer. Poucas horas depois, uma outra pessoa é tomada por uma espécie de “cegueira branca”. Depois outra. E mais outra.
A epidemia de cegueira que acomete a cidade (que está mais para Lisboa – ou outra metrópole qualquer – que a província de Ribatejo, onde Saramago nasceu) é o tema da obra, que vai além do mero fato e se constitui praticamente em uma parábola sobre os sentidos e as relações humanas.
Ficar cego é uma forma de tornar a ver, ou ver com os olhos da alma. Ver com os outros sentidos, ou, ainda, reaprender a sentir. Como Paulo, de cujos olhos, após ter cegado no caminho de Damasco, caíram escamas. Ou, ainda, como Miguilim, o protagonista de Campo geral, que, num dos lances mais poéticos da prosa roseana, tem o seu reolhar o mundo – com as dores e perdas de um rito de passagem particular – simbolizado por um par de óculos que lhes são postos por um senhor (também) de passagem pelo Mutum. Significativamente, é alguém “de fora” que o ajuda a ver, ou ver de novo modo.
De outro lado, não ver o outro é dessignificá-lo. E o outro, sabendo-se não visto, cessa de envergonhar-se por seus maus-feitos e reifica o seu próximo, tornado distante porque não há mais a ligá-los o espelho dos olhos de um e de outro. Como nada significam um para o outro, sequer nomeiam-se mutuamente.
E por que o fariam? Porque nomear é uma forma de compreender, de apreender. Dito de outro modo, de ter sob controle. As personagens permanecem sem nome como se fôssemos convidados a conhecê-las por outras marcas que não as da distinção nominal, do título. Não há a protegê-las o bastião de um nome, de uma história, de uma herança; cobre-as apenas uma cegueira branca, que ilumina, como uma segunda chance. A própria cegueira é uma idéia revista – não lança em trevas: revela.
Somente uma mulher continua a ver, no sentido físico do termo. Por isso passa a guiar os outros, vendo por eles, ao mesmo tempo em que assiste à miséria humana de pessoas reduzidas aos seus mais baixos instintos.
Contudo, a mulher não vê que lidera uma revolução, tão ocupada está em doar-se aos outros. Doa-se, junto com outras mulheres, para a sobrevivência de todos. Mesmo violada, não permite que algo se quebre dentro dela. Caminha em sua integridade no meio do inferno. Deixando de olhar para si, não se vê mais como indivíduo, como alguém com uma história particular; olhando para os outros, vê-se a si mesma como parte da humanidade inteira. Integra-a. Pertence-lhe.
Em alguns momentos, porém, a mulher terá preferido cegar como os outros, para não ser testemunha de tanta iniqüidade. Os outros, de seu lado, podem enxergá-la. Não é apenas uma voz – ela é esteio, a mão que guia, aquela que orienta, a que vê, a que antevê. Nunca foi tão bela, diz, como quem crê, uma outra que, no entanto, nunca a vira.
Quando a visão volta a todos, é ela agora quem vê um céu branco. Talvez por ter exercitado ao limite o postar-se no lugar do outro, talvez por ela mesma ser, ao fim de uma experiência tão singular, “iluminada”. Mas o temor da cegueira dura um momento: a cidade continua ali, diante dos seus olhos, como prova de uma existência que prossegue.
Embora não se perceba à primeira vista, certamente não é mais a mesma cidade, porque não são as mesmas pessoas a habitá-la. Viveu-se ali apenas com a essência das coisas – mesmo tendo sido algo passageiro, um alumbramento, sempre existem, para vivê-lo e vê-lo de novo (em que pese o paradoxo da afirmação, numa obra em que as personagens cegam quase todas), sempre existem, dizia, o déjà-vu, a memória. E os outros.

Texto originalmente publicado no blog Paisagens da crítica, de Julio Pimentel, em 19 de dezembro de 2006

Gente doida e gente sã

Será que quando Machado de Assis publicou O alienista, em 1882, estava antevendo, como Orwell, um fenômeno ulterior? Será que estava adivinhando a situação mostrada no Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, de não haver mais lugar para se colocar tanta gente doente?
Claro que aqui não me refiro a causas neurológicas, mas a escolhas egoísticas, a falta de ética, que também podem adoecer o espírito. Nessa acepção, a diferença entre ser são e não ser é cada vez mais tênue. Dá até para a gente desconfiar da própria sanidade. Principalmente quando nos enganamos a ponto de incluir em nosso círculo - de amigos, profissional - pessoas completamente despirocadas, capazes de tamanha inversão da realidade que não nos possibilitam participar da conversa, posto que estão a falar de outra coisa, que desconhecemos. Outra dimensão. Papo de bêbado.
Já disse que não curto observar a palavra, pela qual tenho tanto zelo, se espatifando no vazio. Mas tem acontecido com uma frequência indesejável. Palavras sem retorno, diálogo impossível. Como também muita violência gratuita por aí, gerada por essa mesma ausência dialógica. Cada um se agarra à sua verdade, ao seu "direito" e afronta quem o obrigue a encarar a realidade, que, no fundo, é uma verdade coletiva.
Que podemos fazer? Silenciar para não alimentar a sandice alheia? Pois é com nossas palavras, devidamente distorcidas, que difamadores se sustentam, uma vez que não têm capacidade própria de criar algo. Ou fingir, como no livro de Saramago ou na história mais antiga da terra de cegos, que estamos também doentes, para não parecermos tão ameaçadores?
Parece mesmo que o desafio contemporâneo seja, como anotei na resenha sobre o Ensaio, passear no meio do inferno sem perder a integridade. Um desafio, obviamente, apenas para quem tem algo a perder.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Leituras viscerais e imperdíveis

No vizinho http://nemguerenempipoca.blogspot.com/ perguntei aos amigos o que fazia do cantinho onde moram um lugar inigualável. Agora quero saber sobre suas leituras: o que você indicaria como um livro imperdível? E um livro visceral, algo que abalou suas estruturas? Veja que não são necessariamente a mesma coisa.
Eu, por exemplo, considero como um dos melhores livros que já li a obra do mexicano Ignacio Padilla, Amphitryon - pela urdidura, altas sacadas, repertório cultural do autor, tudo reunido com toque de mestre. Mas um livro que para mim valeu como um soco no estômago foi A paixão segundo G.H. - que encontrei perambulando pela biblioteca da faculdade e cuja lombada saltou aos olhos, atraindo-me irresistivelmente. À primeira frase, pensei: "Esta podia ser eu!". Ou seja, era um livro que, àquela altura da vida, eu precisava ler, que pedia para ser lido. E ainda por cima, segundo a autora, Clarice Lispector, era um livro para ser lido por "pessoas de alma pronta". Tivesse eu o privilégio!
Mas chega de blablablá: quais são as suas leituras favoritas, as que tocam sua mente e sua alma? Conte, conte tudo, não esconda nada.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Escritos alheios I

Gosto muito de O verbo no infinito (poema em que andei cismando um dia desses) do frequentemente injustiçado Vinicius de Moraes. Os verbos são usados no infinitivo para reforçar a ideia da ação constante, incessante:

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

Mesmo com o sofrimento todo, o eu poético afirma que vai "esquecer tudo ao vir um novo amor".

Não sei por que, mas isso me faz lembrar uma historinha da Turma da Mônica, chamada "As emoções bárbaras" (e já vi que vários internautas se lembram dessa história). Um ente superior resolve descer à Terra para viver as tais emoções bárbaras, de que já não lembra mais. Claro, vai topar com Mônica e Cebolinha. A história é ótima, tão boa quanto a do mito da caverna, também desenhada por Maurício de Sousa e protagonizada pelo Piteco.

Talvez minha estranha associação (Vinicius+quadrinhos) tenha a ver com a ideia de que o esquecimento nos leva a fazer tudo de novo. Não é por isso que costumamos ser mais cuidadosos ao manusear objetos pontiagudos, ao mexer com fogo? Na verdade, porque "lembramos". Afinal, aquilo machuca, queima etc.

Por que será que no que diz respeito às emoções costumamos "esquecer"? Ou fingimos que esquecemos? Muitas vezes, elas também machucam e queimam.

Mistérios.