terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A morte do homem cordial

Foi Sergio Buarque de Holanda que, em 1936, fixou o conceito histórico do homem cordial como parte da formação brasileira e contribuição nacional à civilização. À primeira vista, pode parecer uma ótima qualidade, o ser cordial, mas Sergio Buarque logo esclarece que, diferente da típica polidez oriental, a cordialidade brasileira é mímica, imitação superficial que serve de ardil psicológico, para ganhar vantagens. Somada à cultura política brasileira, a cordialidade viria a se traduzir em nepotismo, compadrio, afetividade de fachada, falta de solidariedade e de empatia, valorização de interesses pessoais em detrimento dos coletivos. 
Assistimos na atualidade à derrocada do mito do homem cordial. Infelizmente, porém, ele tem dado lugar à sua versão mais tosca, arrogante, armado da ignorância mais atrevida e vociferante. Provavelmente, sempre esteve ali, à espreita, só esperando o momento oportuno de se manifestar sem as reservas do politicamente correto, tão execrado hoje. Hoje pode-se expressar todo o horror ao outro, ao pobre, ao preto, à mulher, ao homossexual, ao nordestino, sem reservas. Pode-se falar de tudo sem amarras e sem estudo, falar por falar, aos borbotões, criando um caudal de asneiras e assombrosas inverdades históricas. Um mar de lama, como o que tomou Mariana e Brumadinho, e promete avançar por muito mais. 
Vejo, abismada, pessoas conhecidas replicando maluquices sem nenhum pudor. Mas, se maluquices são, que pudor esperar? Pena que sejam do pior tipo: difamatórias, destrutivas. Tenho evitado debater nesse nível em que faltam coerência, organização mínima de ideias, fontes confiáveis. 
Permaneço na esperança de que prevaleçam no país os tipos éticos. Sei que existem, conheço alguns tantos, predominam entre meus amigos, graças aos céus. Mas ainda é preciso que se reúnam, que se fortaleçam e se façam ouvir em meio à algaravia e ao caos. Se o homem cordial, que era como nosso mito fundador, tem caminhado para seu fim (ou sua transformação em algo pior, por enquanto), é possível também que algo melhor surja desse apocalipse social e político.