terça-feira, 20 de novembro de 2012

Rien que la liberté

 Para Lu Salgado, um post-conversa que estava devendo

Tive um namorado que precisava alardear o tempo todo sua liberdade, como se eu vivesse atrás dele ameaçando-o todo o tempo com uma bola de ferro e uma corrente. Talvez ele tivesse essa necessidade porque foi preso político, quem sabe? O fato é que, de tanto ele falar nisso, um dia eu declarei sua alforria. Assim, com essas palavras. E ele ficou em choque - talvez ainda esteja.
O grande engano desse meu namorado, tão vivido mas tão imaturo emocionalmente, era não perceber que as pessoas não dependem de sua relação com as outras para serem livres. Ou melhor, sua relação com outras pessoas não afeta em nada sua liberdade, percebida ou não. Porque as pessoas, em princípio, se juntam a outras porque querem, e não porque são obrigadas, diferentemente do que acontecia em outras épocas. Exatamente como fazemos ao eleger nossos amigos - livremente, por afinidade, por afeto.
Ser livre, portanto, é uma decisão individual (salvo em casos de escravidão, cárcere privado, uso da força por outrem), um estado de espírito. O mais livre dos maridos pode se sentir aprisionado sem o ser, pela simples percepção que tem de si. O mesmo vale para as mulheres, é claro (embora no caso delas ainda haja, mesmo em número decrescente, as que dependem financeiramente dos parceiros e por isso se sentem aprisionadas). [Difícil não me lembrar dos autorretratos de Francis Bacon...]
Contraditoriamente, apenas as pessoas que se sabem livres são capazes de se comprometer com algo ou com alguém. Porque não se sentem ameaçadas, assumem um compromisso porque querem. Porque não se sentem obrigadas, porque fizeram uma opção, costumam ser mais respeitosas com as verdades alheias. Talvez nem toda pessoa livre seja tolerante, mas todo aquele que é tolerante tem uma mente liberta. Ética e liberdade, portanto, têm tudo a ver.
Claro que não estou dizendo que as pessoas mentalmente livres, porque fazem escolhas conscientes, estão isentas das questões comezinhas - elas não podem escolher não pagar contas (a menos que queiram ter dor de cabeça), trabalhar, estudar, aguentar chefes chatos, tudo como todos. Também estou aqui levando em conta somente pessoas normais, que não tenham desvios de personalidade - um psicopata pode se sentir livre para fazer o que quiser, porque as consequências do que faz não têm efeito moral ou emocional sobre ele.
Aqui cabe uma outra qualidade de ser livre: não significa fazer o que der na telha ou dizer o que der na veneta. Ou, pelo menos, não se pode fazer qualquer das duas coisas sem levar em conta as consequências de ambas. Quer dizer que ser livre implica respeitar o quadrado do colega, os sentimentos do colega. Sincericidas de língua solta acham que são libérrimos por dizer tudo que pensam - não são.
E quanto à liberdade de ir e vir? Ela pode ser limitada por muitos fatores, mas dificilmente uma pessoa livre fica onde não cabe sua alma (diferentemente dos siricotiqueiros de plantão). Liberdade é uma qualidade solar, que não favorece cantos escuros onde se esconder. Quer dizer, então, que exige certa coragem, estar exposto a críticas e tiros e continuar caminhando (lembram da consciência tranquila = estado de felicidade?). E também leveza - o que não significa falta de seriedade ou de profundidade -, para que se possa ir cada vez mais longe.
Dá trabalho, não? Mas como é bom deitar a cabeça no travesseiro e imaginar que o dia de amanhã será do jeito que sonhamos e decidimos hoje, merecidamente com as flores (imagino sempre-vivas, pequenas e duradouras como vitórias diárias) que semeamos.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Reflexão de botequim - Essa tal felicidade

Tem uma música do Tim Maia com esse título, da sua última fase, mais pop, lembram? Tristíssima! E a ideia é tão popular quanto a canção: todo mundo se pergunta sobre a tal felicidade, onde está, o que a garante. Isso tem resposta? Tem sim, e cada um tem a sua, se souber procurar no fundo de si.
Porque a felicidade responde a cada um de um jeito, mais fácil é dizer onde ela não está - no outro, ou num lugar fora de nós mesmos. Ou em um objeto ou trabalho ou no curso que se escolher fazer na faculdade. Nananinanão: ser feliz só depende da gente, do que temos a NOS oferecer.
Não precisa ser muito. Mas quem disse que é fácil? Começa pela complexa tarefa de se aceitar, de se conhecer, tendo coragem de ficar sozinho consigo. Às vezes é dolorido olhar no espelho, não é? Muito mais fácil sairmos de nós mesmo, vestirmos uma personagem para agradar os circunstantes, não precisar pensar em nada.
Para dificultar mais um pouco, não é um estado perene. Então, como fazer sua "manutenção"? Cada um tem sua fórmula. Talvez o melhor seja não achar que se trata de algo a perseguir, muito concreto, palpável. Tenho cá pra mim que felicidade se aproxima muito de paz de espírito e consciência tranquila - porque, pela minha experiência, são o que possibilita ser livre, e isso (de novo) para mim é sinônimo de felicidade (nem vou entrar no mérito de dizer o que considero ser livre, que isso é assunto para outro post). Se faço por onde ter essa paz e essa consciência tranquila, manter-me feliz por mais tempo, ou mais vezes, não me parece tão difícil.
Às vezes observo os sabotadores da própria felicidade (claro que não estou falando de depressivos reais, embora a depressão possa ser resultado da autossabotagem). Mas eles nem sabem que o são. Simplesmente vivem como vítimas e apostam que só serão felizes quando tiverem dinheiro, um carro, quando estiverem em tal lugar, com tais pessoas. A procrastinação é talvez a maior inimiga do "ser feliz", porque lança tudo para o indefinido e afasta da possibilidade. Já perceberam que nada é possível para a pessoa infeliz? Normalmente espera que milagres aconteçam, mas não acredita verdadeiramente em milagres. Só acredita que é merecedora, mesmo sem mérito, de alguma "bênção". Por quê? Porque ela é infeliz, uma vítima, e precisa mais que os outros. Como, porém, costuma procrastinar tudo, tende à inação. E assim nada acontece em sua vida. Resultado: mais infelicidade, mais autopiedade. E um tantinho de idealização de um suposto "passado feliz". Em vez de a energia circular, as reclamações e lamentos é que viram uma espécie de mantra - e a tristeza se sente com todo direito de se instalar, pois foi devidamente evocada por essas pessoas.
Isso não quer dizer que as pessoas que alcançam tudo que desejam, correndo de lá pra cá, sejam necessariamente felizes. Também conheço gente eternamente insatisfeita com o que tem, porque provavelmente projetou na casa, no carro, no tablet a sua felicidade. De tanto correr para alcançar essas coisas, nunca teve tempo de olhar para dentro, de aprender a confrontar seus fantasmas e de gostar da própria companhia, com qualidades e defeitos, dores e delícias que isso traz. Há quem simplesmente ignore o ruído de dobradiças e de portas batendo e carregue uma casa mal-assombrada inteira dentro de si.
Não estou dizendo, com isso, que as pessoas têm que ser bobas alegres. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O luto é necessário muitas vezes, como também a melancolia trazida pela reflexão, a tristeza que cria poesia e sabença.
Se ser triste de quando em vez é natural, por que será, então, que ser feliz de vez em quando parece tão difícil? Meu palpite (feliz ou não) é que a questão é mais difícil porque é anterior: muita gente não sabe simplesmente ser. Ninguém pode nos tirar o que somos, a menos que queiramos. Só deixamos de ser quando deixamos de existir - mesmo com uma existência pálida, ainda assim somos alguém. Mas se nossa satisfação depende de ter alguma coisa, é mais fácil nos frustrarmos - se para ser preciso ter, e não tenho, deixo de ser, deixo de existir. Ou pior, parasito minha própria existência - soy infeliz (antes fosse tema de Almodóvar!), es así que soy.
Para deixar os procrastinadores mais tristes - ou para libertá-los de vez de sua prisão - termino minha reflexão de botequim lembrando uma outra música, que fala sobre o melhor lugar do mundo. O doce Gil concordaria comigo que a felicidade, como o melhor lugar, é "aqui, fora de perigo, agora, dentro de instantes". Não amanhã, nem depois, não nos confins. Aqui. Agora.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Como é bom voltar

Sempre digo que a vida ideal seria ter casas espalhadas pelo mundo e um porto seguro para o qual regressar. Ou uma atividade que permitisse conhecer muitos portos, por algum tempo, e depois poder voltar ao tal porto mais seguro. Que hoje seria minha casa com uma microparede (um nicho apenas) pintada de Blue Bright Violet (o nome dado pela Coral não é esse, que peguei emprestado para sempre de uma caixa de lápis da Berol), fotos preto e branco, muitos livros. Mas que poderia ser outra, com uma grande mesa de madeira, cozinha ampla que permitisse invenções e muita conversa jogada fora, aquecida antes por um cafezinho. É muito bom viajar, mas é ainda melhor ter para onde voltar, ter o que contar, pessoas para ouvir o que se conta. E suas paredes, seu próprio chão, o som dos seus passos reconhecido.
Porém, há outro tipo de regresso que, podem acreditar, é ainda melhor. Voltar para si mesmo. Já tiveram a experiência? Eu acabo de ter.
Mesmo não tendo conseguido dizer tudo o que pensava, o que estava ensaiado (e daí talvez a dor de garganta de dois dias, diriam os antroposofistas e o meu acupunturista Dr. Magical Carlos), verbalizei enfim meu desejo de abandonar uma situação que se arrastava por um ano. Ainda vai exigir de mim um último fôlego, mas minha alma se sente novamente leve, eu me sinto novamente fiel a mim mesma. Como se, na volta de uma longa viagem, encontrasse uma casa empoeirada, com alguma desordem - mas minha. Entendem? Minha casa. Eu. O porto. Que saudade!

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Todo mundo em pânico já!

Lembrei-me um dia desses de uma crítica que recebi de uma chefe, há alguns anos: eu era muito tranquila, tinha que "entrar mais em pânico". Como não tenho essa tendência (fico brava sim, cresço dois metros quando necessário, minhas narinas dilatam, então é melhor sair da frente - mas é improvável entrar num estado de estresse, pavor, autocomiseração constantes), adquiri uma máscara "do Pânico" nas lojas Americanas (oferta imperdível de Carnaval) e deixei-a na gaveta para situações de emergência. (Para ilustrar, coloquei umas fotinhos da época no Nem guerê nem pipoca.)
A mesma chefe tinha comentado uma vez sobre meu "jeito baiano de ser" (e é uma pessoa da área de educação, podem crer nisso?), ainda sobre minha irritante tranquilidade quando as coisas ao redor eram muito estressantes. Acho que ela se irritava mais com o fato de eu ser diferente dela, de agir de modo diferente e mesmo assim conseguir ótimos resultados no trabalho.
Só que eu achava que isso era um caso único, uma pessoa que acredita no pânico como sinal de eficiência (ou pelo menos aparência de). Que, para denotar envolvimento, precisamos mostrar que estamos muito, muito preocupados, quase histéricos. Reclamar, colocar a culpa em mais alguém, se vitimizar um tanto. Aí descobri que tem bem mais gente que segue essa linha de La vie en peur e se horroriza com quem não só propõe soluções diferentes mas também procura ter uma vida normal para além do trabalho, com outros interesses, cultivando as relações humanas. Se eu consigo tempo para outras coisas, como posso fazer um bom trabalho? Simplesmente posso.
Ufa, ainda bem que guardei minha máscara!

sexta-feira, 30 de março de 2012

Mercúrio retrógrado

A culpa só pode ser de Mercúrio.
Quando as comunicações ficam truncadas, a responsabilidade é do pequenino. E um jeito de ele chamar a atenção, já que é tão pequeno, é fazer bagunça. Ou birra, porque imagino-o se recolhendo (retrogradando) no quarto, batendo a porta, como menino mimado. Certamente, teve um dedinho de Mercúrio na história da torre de Babel...
Ou então o baleês é a nova língua oficial, e ninguém me avisou. Por isso é que fico um tempão tentando explicar uma coisa, escolhendo a palavra mais exata, e recebo respostas estapafúrdias. Ou não, porque na verdade são dadas em baleês. E aí a culpa é minha, porque não domino o idioma.
E provavelmente a nova língua é mais enxuta que o português arcaico que falo, e por isso as pessoas sentem menos necessidade de explicar, usam frases curtas e tal.
Foi o que aconteceu um dia numa loja da Centauro, onde fui trocar uma camisa de Guga - a gerente, em baleês, me disse apenas que não dava para fazer a troca. Quando viu, porém, que eu não falava a língua e parecia carecer de mais explicações, condoeu-se e acabou dizendo em português que eles até concediam mais 15 dias além dos 30 de praxe, mas, uma vez que a compra tinha sido feita no dia x, não era mais possível, que pena etc. Bem, como a matemática é uma linguagem universal, fiz as contas mentalmente e disse a ela: mas hoje é o 45o dia! então podemos fazer a troca.
E nossa comunicação cessou. Subitamente. Como se alguém tivesse arrancado o fio do telefone da parede (cena ainda clássica de cinema, mesmo em tempos de wireless, wi-fi e tal).
Fazia tempo que não me sentia tão odiada por alguém. A mulher emudecida foi até o computador, viu que eu tinha razão e passou a camisa para uma subalterna. Só quando perguntei se "tinha dado certo" ela respondeu que eu podia trocar a camisa. Mas parecia doer muito nela, e ela sumiu. Que pena. Quase doeu em mim.
Tudo culpa de Mercúrio. Ou do baleês?

domingo, 18 de março de 2012

Muito sem graça

Pois o mundo e as pessoas andam muito sem graça. Aliás, vejam como aquilo que é gracioso, gratuito, engraçado é aguerridamente combatido (já falei aqui também do combate à alegria) - o que serve logo de alimento para a imaginação, pois é como se um rinoceronte enlouquecido avançasse sobre uma pluma que descesse rodopiando do céu.
É assim que vejo a graça: algo leve, delicado, que chega de lugar nenhum, de modo inesperado, e pode ser levado pelo vento do mesmo modo - e a imagem nem é minha, mas da primeira e última cenas de Forrest Gump, e já foi citada por um "especialista em graça", Philip Yancey.
Antes que alguém pense que vou fazer uma pregação, aviso que meu comentário não é religioso ou teológico, mas ético. O desgraciosismo atinge todas as esferas da vida humana, todo tipo de relação - e as notícias da TV estão aí para atestar isso, o fascínio pela desgraça alheia.
Outra noite, um casal de amigos queridos (num lugar de nome "esperança", vejam só) comentava como havia tentado promover um evento gratuito de cinema, e como o público era desrespeitoso - as pessoas chegavam atrasadas e saíam sem cerimônia no meio da sessão. Pode ser porque os filmes não agradassem, mas provavelmente teve a ver também com o fato de a maioria não estar preparada para receber algo gratuitamente. Por incrível que pareça, receber é uma tarefa difícil, porque pressupõe confiar, atribuir valor a quem concede (mesmo que nada seja pedido). Afinal, por que valorizar o que vem de graça, perder a oportunidade de mostrar o poder de compra, de conquista - a disputa? Quem concede deve estar querendo algo em troca, não está? Não mesmo?
Eu não sou nenhuma Madre Teresa, mas acredito, como um certo profeta das ruas cariocas, que gentileza gera gentileza. E assim já fui atropelada várias vezes pela desconfiança alheia - está sorrindo por quê? Desse jeitinho mesmo, quase uma bofetada que faz o choro subir aos olhos. Por outro lado, já fui agraciada por gente que encontrei uma só vez antes de nos separarmos na poeira dos caminhos. 
Sim, devemos ter cuidado, ser menos ingênuos, desconfiar mais - e as pessoas "capazes de tudo" que encontro por aí não me deixam esquecer disso. Mas (e também já disse isso), como quero uma bagagem leve para ir mais longe, deixo para trás o rinoceronte em surto e fico com a pluma.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Para onde vão os noias?

Nos últimos tempos, pelo menos duas ações político-eleitoreiras deram na cara sua morte despudorada na praia. Uma delas foi a tal da lei da faixa de pedestres - se durante duas semanas assistimos a uma certa confusão no trânsito, entre a meia dúzia de motoristas seguidores da lei, os demais que consideravam tudo babaquice e os pedestres assustados, que não sabiam se podiam ou não atravessar, hoje não há motorista que se digne a olhar para o lado na hora de meter o pé no acelerador em cima da faixa de travessia.
A outra ação eleitoreira tem efeitos muito mais graves. A prefeitura de São Paulo tinha já, no primeiro mandato de Kassab, expulsado os noias da Cracolândia clássica, no Jardim da Luz, para os Campos Elíseos, a fim de restabelecer o antigo (bem antigo) glamour da região, que foi aparelhada com a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa, além de reformas na Pinacoteca do Estado e na estação da Luz. Agora o governo estadual resolveu contribuir, enxotando os noias para todos os cantos da cidade.
Já perceberam como não se fala mais na heroica ação policial? Pois eu digo a vocês que em plena luz do dia é possível cruzar com grupos de mortos vivos em várias ruas do centro, da República, Santa Cecília, Consolação e - tremeis, bem-aventurados - Higienópolis. Um dia desses, indo levar roupas à tinturaria, vi meia dúzia de pessoas fumando crack na alameda Nothman, por volta das 11h, enquanto os seguranças da Funarte e os lojistas apenas assistiam à cena.
E agora, Geraldo? Que me diz, Gilberto? Dispersos os noias, dissipou-se o problema? Mais me parece que essa dispersão geográfica só vai ampliar a área de atuação dos traficantes, fazer mais vítimas do vício e reduzir cada vez mais a liberdade de ir e vir dos outros cidadãos.