quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Quase dois irmãos: merecimismo e meritocracia

Outro dia falei da meritocracia, essa falácia travestida de recompensa aos desvalidos esforçados. Hoje, li um texto da sempre ótima Eliane Brum sobre os filhos de classe média que, mesmo tão "preparados" materialmente para a vida, estão completamente despreparados para a vida. Tudo porque, segundo Brum, os pais os têm enganado com outra falácia, a de que merecem tudo. Assim, sem esforço, graciosamente, por uma suposta genialidade. Não lhes ensinam a lidar com a frustração, com a falta, com a raiva. Seria quase o oposto da meritocracia, se não provocasse males similares. Eu batizei esse mal irmão da meritocracia de merecimismo (se é que alguém já não o chamou assim).
Enquanto a meritocracia desvia a atenção de todos da desigualdade social, o merecimismo desvia o olhar dos problemas da vida real que podem acometer os mais abastados.
Tenho visto exemplos de merecimismo no cotidiano, tanto em jovens que fazem as coisas pela metade, numa espécie de dormência física, como em crianças que ficam transtornadas por não terem alguma coisa. A fonte do mal é a mesma: não terem aprendido com seus pais que nem sempre terão tudo à mão, que nem sempre haverá alguém que faça as coisas por eles. Quando caírem na real - o mundo e o contato com a diversidade, e as consequentes respostas não aprendidas em casa -, como vão reagir? Com raiva, batendo o pé? Alguns talvez sejam mais agressivos, recorram à violência; outros podem até entrar em depressão. O mais terrível é perceber que dentro dessa bolha criada em família conceitos como civilidade, liberdade e justiça são necessariamente distorcidos - por exemplo, não ser justo que o outro tenha e eu não, não por uma questão de injustiça social, mas porque o outro tem culpa na minha falta. Algo que beira o conceito de inveja, em que não quero que o outro tenha algo que não tenho, como se o fato de ele não ter abrandasse a minha falta. Claro: não abranda. E isso só cria mais amargura, mais inveja, mais violências, grandes e pequenas.
O filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, traz esses dois irmãos conceituais numa chave menos óbvia, mas possível: a menina pobre, filha da empregada, batalha por uma vaga na universidade pública, e vence. Por seu talento, por seu esforço, e também pelo esforço da mãe, que lhe garantiu condições mínimas para que estudasse, além de ter aprendido com um professor que ela não deveria se sentir inferior a ninguém. Já o filho da patroa, que teve acesso a tudo de melhor, não consegue seu lugar ao sol, e fica deprimido com a derrota inesperada, absurda. O que faz sua mãe? Dá a ele uma temporada no exterior, para fazer um curso livre em Harvard, por um ano. Não lhe ensina a lidar com a frustração - varre a malvada para debaixo do tapete. Na verdade, não ensina nada, oculta a verdade, não concede um pouco de luz ao filho - ela, que lhe deu à luz.
Sob as nuvens da meritocracia e do merecimismo, vivemos tempos sombrios.

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