quarta-feira, 28 de março de 2018

A dor e a delícia

Não é fácil ser quem se é, bato nessa tecla várias vezes. Os padrões, as pessoas, o sistema, tudo quer nos engessar para maior controle e "harmonia" num mundo de desigualdades de todo tipo.
Por exemplo: uma moça está esperando um filho daquele que é seu companheiro há duas décadas. O bebê deve nascer a qualquer momento, ela está no final da gestação. Ela, que protelou muito uma gravidez, resolveu gestar uma criança.
Desde o início, houve a cobrança de uma gestação coletiva, com toda a família do marido. Deveria haver a presença constante dos avós paternos, a futura mãe deveria pedir e ouvir conselhos, aceitar a participação de toda a família em sua gestação. Mas ela, já conhecida por seu pouco apreço à sociabilidade, seguiu fazendo e cumprindo suas regras, estudando sobre o assunto, tomando somente para si o desenvolvimento do bebê. Por sorte, é uma mulher independente, que sempre trabalhou e batalhou muito e já colheu alguns frutos desse modo de ser.
Os familiares do futuro pai ficaram inconformados. De lamentosos passaram a irônicos e, num dado momento, agressivos com a futura mãe, que se fechou ainda mais em copas. Somente ela e o bebê, sem precisar de ninguém. O pai se alia aos familiares, impõe à mãe que ela precisa mudar para que continuem juntos. A mãe reage a isso também, dizendo que ele precisará reconquistá-la. Um impasse, no sentido do francês original, de "rua sem saída".
Na verdade, essa moça continua sendo quem sempre foi. Alguém com temperamento forte, pouco sociável, pouco ligada a padrões familiares. A gravidez deixou-a mais sensível e ensimesmada. Sentindo-se invadida, protegeu-se ainda mais. Porque espera um bebê, os circunstantes acreditaram que mudaria para satisfazê-los. Pior: todas as expectativas foram depositadas no pobre bebê, novo messias transformador da realidade.
Mas a vida real não é assim. O bebê até vai mudar a realidade, mas não do jeito que se espera. As pessoas ao redor mudarão em algum sentido, mas não no que se espera. Talvez o casal permaneça unido, talvez seja melhor não, se o que se espera dele é que satisfaça pessoas fora da relação. Talvez o bebê mostre, na verdade, outros caminhos possíveis para a felicidade, como o do respeito à individualidade, o do direito ao silêncio e à calma. Que família não são todos juntos o tempo todo, mesmo se detestando, mas pessoas que, não tendo "direito a troca", deveriam aprender a se respeitar e assim aprender a se amar (até porque o amor de geração espontânea é raro e não sobrevive sozinho).
Ser quem se é pode ser libertador, mas também é doloroso algumas vezes. O preço é alto, mas vale cada centavo.

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