Dia desses, fomos almoçar com um casal de amigos e, claro, falamos muito de comida. Num dado instante, o rapaz disse que faria um comentário "aparentemente" sexista. Na verdade, foi escancaradamente sexista, ou pior, machista mesmo. Ele, com apoio da esposa, afirmou que os homens cozinham melhor que as mulheres - que um amigo deles, quando se decidiu a cozinhar, deixou a mulher "no chinelo", porque "quando um homem resolve fazer uma coisa, já viu".
Bom. Na hora, nem respondi. Levei aquela reflexão para casa, coisa que, acredito, ele, o proponente da questão, deveria fazer também. E às vésperas do tal Dia da Mulher fui ajudada na minha reflexão por muita gente reclamando dessa meritocracia masculina, completamente facilitada pelas jornadas múltiplas de trabalho feminino.
Um homem pode se dedicar a ser chef, profissional ou não, curtir esse glamour porque há certamente uma MULHER em algum lugar cuidando das questões comezinhas da vida DELE. A empregada, a mãe, a mulher, a namorada, a secretária, a amiga, a ficante, a irmã, a tia, a avó, até a sogra. Já a mulher tem normalmente que trabalhar fora, trabalhar dentro e ainda cuidar da rotina de outrem, inclusive filho, marido, namorado etc. etc. Fica fácil brilhar, não?
Talvez cozinhar não tenha nada a ver com gênero. Mas tem a ver, como quase tudo, com equanimidade de condições. Os números só confirmam a desigualdade de gênero quanto a quem merece ou não ser bom/boa chef ou qualquer outro/a profissional: enquanto as mulheres gastam 18 horas de seu dia com demandas diversas (as jornadas múltiplas), os homens gastam 10. Não preciso nem comentar a respeito da desigualdade salarial entre homens e mulheres, terra tão pisada.
No caso da atividade gastronômica, podemos ainda aventar a hipótese de os homens se adaptarem melhor a um ambiente culturalmente agressivo, inclusive porque dominado por eles. Mas eu prefiro a hipótese das luzes da ribalta: por que me esmerar no interior doméstico se posso brilhar para o grande público? Michael Pollan, em Cozinhar: uma história natural da transformação, define o churrasco como uma ação masculina, apolínea (dirigida), e o cozido como algo feminino, dionisíaco (caótico). Citando Lévi-Strauss, ele fala das diferenças entre cozinhar "para fora" (caso do churrasco, uma comida que remete à "morte", ao sacrifício primevo) e "para dentro" (caso do cozido, comida geradora de "vida", agregadora de ingredientes e de pessoas em torno dela, um verdadeiro cabaré de asas). Ou seja, desde sempre cozinhar foi sinônimo para o público masculino de ser pop e de ter o controle .
Assim é que ainda hoje, porque tanta coisa não mudou, as luzes vão para eles. Merecem? No dia em que iguais condições de vida forem dadas a todas as pessoas, e ainda assim eles tiverem se destacado, por suas qualidades pessoais, e não por serem homens, poderemos dizer que sim.
Querida Sol. Aqui em casa a realidade é outra: o Ronaldo cozinha muito melhor do que eu. O porquê? Primeiramente (fora Temer), falta de opção. A opção, no caso, seria eu. Mas eu apenas faço uma comida. E cozinhar, sabemos, não é fazer comida. Tem muito mais nessa química aí. Cozinhar, pra mim, é um mistério dos mais misteriosos (mais ainda do que parir filho). É o amor transmutado (e, dependendo da intenção e do estado de espírito do cozinheiro, pode ser outros sentimentos também). Eu tenho muito mais tempo do que ele pra cozinhar, já que não trabalho "fora", nem tenho filhos. Aqui, quem faz jornada dupla é ele: chega do trabalho e muitas vezes vai lá e cria uma comida muito boa. Mas esta é a minha realidade. No geral, é exatamente como você descreveu (lindamente, como sempre). Tudo isso pra dizer que concordo com você: cozinhar bem não tem a ver com gênero, mas, primeiramente (fora Temer), com espírito. E segundamente com as condições, favoráveis ou des, para isso, como tudo na vida. Adorei seu convite à reflexão. E amei o texto. Grande beijo.
ResponderExcluirSi querida, sua realidade, mesmo rara, só confirma mesmo que cozinhar bem é para pessoas, não para homens ou mulheres. Se há mais uns que outros a terem sucesso nessa atividade, e em tantas outras, é sempre um convite à reflexão. Beijos saudosos!
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