domingo, 27 de dezembro de 2009

Sob a pele de carneiro


Novamente aproveitando um “gancho” musical, o grupo/dupla Palavra Cantada tem uma canção fantástica sobre a necessidade de tolerância e de aceitação das diferenças. Chama-se “Pé de nabo”. Segundo Sandra Perez e Paulo Tatit, embora existam alguns legumes (e também pessoas) difíceis de engolir, “até mesmo um pé de nabo tem alguma coisa boa”. Como já disse em outro momento, todos temos alguma qualidade. Engrosso, portanto, o coro dos otimistas, acompanhando Sandra ao ritmo do lundu.
Chatos e “nabos” existem aos montes e nada impede que sejamos o chato da vez, por mais bacanas que nos consideremos. Alguns chatos até viram personagens – e por isso mantenho vários deles na minha fila de escritos. Mas há um chato em especial que me parece mais difícil de encarar e que pouca serventia tem: o pelego.
Na verdade, ele não é propriamente chato, no sentido estrito. Não é necessariamente aborrecido, enfadonho, irritante. O pelego nos deixa no ar. Desperta uma certa vontade de lhe dar uns sopapos, mas nem sempre sabemos como fazê-lo, porque ele quase sempre é sonso, escorregadio – nossa dificuldade em agarrá-lo (e daí dar-lhe uns sopapos) vem de não conseguirmos defini-lo.
Não que não o possamos reconhecer. Mas às vezes isso demora. Algumas pessoas aparentemente tranqüilas, pouco opiniosas, podem esconder uma natureza “pelega”. Justamente porque pelego é o nome que se dá à pele de carneiro que “encobre” os arreios nas montarias, aumentando o conforto dos cavaleiros. Mais apropriada ao caso contemporâneo, especialmente no ambiente de trabalho, é a acepção que relaciona o pelego ao espião (especialmente nos sindicatos) e ao bajulador, o próprio capacho. Que por sua vez se esconde sob o discurso atual de “capacidade de adaptação à empresa”, daqueles que “vestem a camisa” – provavelmente feita de lã. E quem agüentaria o calor de tal indumentária num país tropical? Adivinhem.
Pela sua tendência natural ao ocultamento, ao não comprometimento, entre os diferentes tipos de puxa-saco, o pelego é pouco brilhante. Normalmente não chama a atenção, não se destaca em meio ao grupo. Sua invisibilidade torna-o pouco ameaçador, especialmente para seus superiores, e também livra-o de olhares desconfiados durante algum tempo, como o velocino de ouro buscado por Jasão. Em tempo: entre os gaúchos, pelego é um passo errado na dança. Poderíamos, portanto, criar um novo mandamento, dando conta de todos esses pecadilhos: “não pelegarás”.
Algo a ser dito em favor do pelego? Se levarmos ao pé da letra o que se diz do “pé de nabo” de Tatit e Perez, alguma coisa positiva há de haver. Por exemplo, a possibilidade de ele se tornar uma personagem literária. Afinal, foi mesmo a releitura de Érico Verissimo que deu a idéia para falar em tal figura.
Podemos imaginar a cena: a garbosa figura do capitão Rodrigo Cambará, todo sorrisos, todo desafio, surge na cidade de Santa Fé, onde conquistará o amor das mulheres, a admiração de uns poucos, a inveja de muitos. E debaixo dele, todo comprimido entre cavalo e cavaleiro, o incansável pelego. Convenhamos que, colocado ali, no lugar mais alto onde ele conseguiu chegar, e até porque vive da fama alheia, ele até parece bastante guapo...

24 de abril de 2008

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