domingo, 27 de dezembro de 2009

Ser o que soa



Bem recentemente, ouvi uma nova gravação de uma canção de Caetano Veloso de que gosto muito. Foi Tony Garrido quem regravou Muito romântico; mesmo sem o arranjo de vozes quase celestiais da versão que eu conhecia e admirava, a letra da canção continua a me inspirar. Gosto sobretudo da idéia de "ser o que soa", de alguém que não doura pílula, que canta somente o que pede pra se cantar e deseja que todos possam brilhar num cântico, numa grande comunhão.
Ser o que soa, e não ser o que é. Por que a profecia em lugar da supremacia? Desafio em vez de pleno controle? Pensando no jogo de palavras de Caetano, fui atrás do verbo eleito. Entre outros significados, "soar" é retumbar, repercutir. Produzir ruído áspero. Também é, por extensão semântica, tornar público, impressionar os ouvidos. Para o compositor, ações típicas daquele que é muito romântico – e, provavelmente, pelo que indica a canção, pertencente a uma geração mais "condoreira" (que teve como seu maior expoente justamente Castro Alves, um conterrâneo de Caetano Veloso), mais afeita às questões sociais e políticas.
Esta é uma idéia que me encanta: o romantismo político. Não no sentido da falta de praticidade, da imaginação sobreposta à razão, mas no sentido de se voltar ao sujeito, ao povo, à inteireza humana. No sentido de não temer a adversidade, de fazer denúncias sempre que necessário. Como um profeta mesmo (e não à toa a palavra professor também se relaciona – ou deveria se relacionar – a essa idéia). Ou como o verdadeiro representante das questões públicas, o político in natura. Correndo o risco sempre de ser o chato da turma, o reclamão, o inoportuno – ossos do ofício de quem não se conforma com a situação imposta.
Muita gente no Brasil tem percebido que esse é um discurso atraente – como é ano de eleições, há quem conclame o eleitor a cobrar exatamente dos políticos eleitos aquilo que se prometeu. Acontece apenas que, aqui, reclamar não basta – nossa Constituição protege com unhas e dentes os órgãos e cargos públicos. Se, de um lado, ofender funcionário público dá cadeia, de outro, colocar um deles atrás das grades pode ser quase uma missão impossível – vejam o caso do promotor mauricinho que assassinou um rapaz no litoral de São Paulo: livre, leve, solto. E impune. Para se processar uma prefeitura, por exemplo, é preciso ter paciência e dinheiro e não é possível recorrer a um tribunal mais ágil, como o Especial Cível. Quando o governo faz, portanto, esse tipo de campanha – "cidadão, reclame seus direitos" –, tudo parece uma grande piada, porque o resultado todos nós, no fundo, já conhecemos.
Obviamente, as coisas já foram piores – não podemos perder nunca essa dimensão histórica. Mas também não podemos "nivelar por baixo", especialmente quando se trata de um governo de origens populares, eleito democraticamente, carregando a bandeira da "esperança que venceu o medo". E a piada oficial aproxima-se da farsa quando vemos dezenas de pesquisas (uma forma de não deixar repercutir o descontentamento, nada muito diferente da propaganda da época da ditadura) que mostram que o brasileiro aumentou seu poder de compra. Na verdade, o que aumentou foi a oferta de crédito (que talvez se retraia com o aumento do IOF), não o salário mínimo. A desigualdade social continua, mas agora os pobres podem financiar seu jogo de sala em dois ou três anos. A classe média também empobrecida pode comprar um carro em quatro anos, um apartamento a perder de vista. Aposentados podem tomar empréstimos para pagar despesas básicas. É um novo milagre brasileiro, agora sob uma "democracia". E num país rico, em que centenas de milhares mal têm o que comer (mostrando o quão contemporâneo é o filme Ilha das flores, de Jorge Furtado), ninguém pensa no que significa a verdadeira "qualidade de vida" no país e no planeta – para isso, o governo brasileiro aposta, por exemplo, em "créditos de carbono": dinheiro oferecido pelos países mais poluidores para que eles possam continuar poluindo. Temos de ouvir como será ótimo receber esse dinheiro, que será utilizado em mais obras do Programa de Aceleração do Crescimento, com Bolsas de todo tipo para a população, blá-blá-blá. Só se esquece de dizer que o dano causado ao meio ambiente, que continuará sendo realizado com o pagamento dessas novas "indulgências", é praticamente irreversível.
Nesse panorama de tentativas de silenciar de um lado e de assentimento de outro, claro que retumba como um trovão a tentativa de um único homem de chamar a atenção de todos para um problema que é de todos. Quando o bispo Dom Luiz Cappio realizava há pouco sua segunda greve de fome (a primeira foi em 2005) contra as obras de transposição do rio São Francisco, muitos discutiram se ele era mártir ou não, pecador ou não (uma vez que a Igreja Católica condena o suicídio), vaidoso ou não, conveniente ou não, redundante ou não. Mas poucos quiseram ver em seu gesto aparentemente silencioso um atrevimento político, uma cobrança ao tal governo popular de suas antigas promessas, como a de ouvir a população ribeirinha num assunto que lhe diz respeito diretamente.
Dom Luiz apenas fez aquilo que cada um de nós deveria fazer: um gesto simples de recusa ao estado a que chegamos. Imaginem, então, se milhares de brasileiros tomassem de repente consciência da sua real importância para este país e protestassem de forma mais contundente contra a desigualdade, a miséria, a prostituição infantil, a exploração indiscriminada de nossas matas e de nossos recursos naturais. Quem sabe nos livrássemos de vez do diagnóstico certeiro de Sérgio Buarque de Hollanda, feito há mais de 70 anos, de que no Brasil a democracia é um lamentável mal-entendido?
O ruído, com certeza, seria enorme.

14 de janeiro de 2008

Nenhum comentário:

Postar um comentário