domingo, 27 de dezembro de 2009

Antes a pimenteira


Há alguns anos a editora Objetiva lançou a coleção Plenos pecados – os títulos foram encomendados a sete escritores famosos, que tiveram a tarefa de imprimir aos pecados capitais sua marca pessoal. Talvez seja desnecessário dizer que um dos meus favoritos é o que versa sobre a gula, não só pela minha própria gourmandise, mas principalmente porque leva a assinatura do sagaz Luis Fernando Veríssimo.
Ao lado, porém, de O clube dos anjos (este é o nome do livro sobre a gula), descobri, no desbravamento da coleção, o livro de Zuenir Ventura sobre a inveja. Aí entendi tudo sobre esse execrável sentimento que é provavelmente o mais comum dos pecados.
Zuenir batizou seu livro, muito a propósito, de Mal secreto. Afinal, todos os outros pecados dão-se mais à luz que a inveja. Querem ver? A soberba vive a pavonear-se, a avareza salta aos olhos, a ira irrompe contra tudo e todos. Luxúria e gula, por distintos motivos, lambem os beiços, enquanto a preguiça cerra as pálpebras à menor ameaça de esforço. Somente a inveja oculta-se sob o manto da sociabilidade – e a moralidade também costuma ser um bom disfarce para ela. Mesmo que alguns não a consigam esconder, dando pinta com seu olhar vítreo e sorriso congelado, não é de bom tom admiti-la. Ou, se a admitem, é para renomeá-la “inveja boa”, que, obviamente, não existe.
Muitos, ainda, confundem ciúme e inveja, mas somos esclarecidos por Ventura (o nome do autor é uma feliz coincidência) de que o primeiro consiste no medo de se perder algo ou alguém para outrem, enquanto a segunda se compraz em que o outro perca o que tem, mesmo que ninguém mais o possa ter. Percebem o horror? Se um pode estar ligado à insegurança, a outra parece resvalar em maldade pura.
Invejosos passam a vida a “secar” o jardim do vizinho. Não contentes em copiar falas e gestos, logo estão a desejar que aquele a quem copiam desapareça. Se isso acontecer, continuarão, porém, infelizes e ávidos de encontrar rapidamente outro alvo para sua fúria silenciosa, diferente da dos iracundos e que pode ter início com uma devoção enganadora.
O que poderia deter a sanha da inveja? No filme Seven (Os sete pecados capitais), do diretor David Fincher, temos uma visão extremada de seus efeitos: a inveja do assassino, travestida de moralidade, é a propulsora da série de crimes que culmina com a ira do pouco heroico mocinho. Normalmente – e felizmente –, porém, ela não termina num banho de sangue.
De qualquer modo, aquela roupa que você adora e que foi insistentemente elogiada manchou na última lavagem? Seu par perfeito mostrou as asinhas depois de alguém ter comentado a felicidade do casal? Fique atento aos sinais – hoje, quando o consumo é exacerbado e atesta a “dignidade” do indivíduo, os invejosos se multiplicam. Não custa, portanto, durante as compras, adquirir também um olho grego e uma pimenteira bem grande...

28 de novembro de 2009

Um espetáculo popular


Somente Ariano Suassuna, do alto dos seus 82 anos, para me fazer vencer uma preguiça macunaímico-invernal e escrever umas palavrinhas.
Na última sexta, fui assistir à montagem da Farsa da boa preguiça, no Sesc Vila Mariana. Cenário lindo, colorido, xilogravuras aqui e ali, a famigerada rede num canto (lugar favorito de Joaquim Simão, o protagonista), o teatro de mamulengos ao centro. Ótimo elenco, especialmente Vilma Melo, que apresenta uma impagável performance de cabra, no sentido estrito do termo. Espetáculo com poucos hiatos dramáticos – uma e outra fala, pouquíssimas de fato, parecem sobrar no espaço, sem ter quem as apanhe e devolva.
Mas o público a tudo responde, com gosto. O gosto de sua brasilidade. Redescoberta, ainda dessa vez, por Suassuna. Porque já não se trata de uma “nordestinidade” pura e simples, e sim do legado português trazido a nós nos estertores medievais, fundido com o de índios, negros e outros tantos pós-chegados. Que se mantém quase intacto nos temas costumeiros: a luta entre Deus e o diabo, o pobre e o rico, a esperteza e a prepotência, a humildade e a ganância e, por que não?, a preguiça criativa e o trabalho escravizante...
Porém, a preguiça do poeta/artista/herói brasileiro, já cantada e sempre criticada (o mais das vezes pelos próprios brasileiros), parece só se tornar qualidade quando renomeada de “ócio criativo”, de preferência por um autor estranja (absolutamente nada contra De Masi, per favore!).
Que será essa nossa resistência a valorizar a criatividade, tantas vezes confundida com um tal “jeitinho brasileiro” (isto sim, uma invenção nefasta)? Talvez porque a criatividade exija muito mais, extenue, angustie muito mais do que o trabalho do autômato? Porque ter sucesso como tarefeiro seja mais fácil, menos sujeito a subjetividades? Tudo pode ser.
De todo jeito, bom mesmo é ver uma plateia inteira se desarmar de possíveis preconceitos, rir à larga, tornar-se toda ela um povo – o brasileiro: criativo, alegre, multicultural, multicolor, multirregional – por um momento. Esse espetáculo já contentaria mestre Suassuna.

5 de julho de 2009

Tempo, tempo, tempo

Uma das coisas mais preciosas que tenho aprendido é a me desvencilhar do que não me serve mais. Melhor dizendo, mais do que o mero descarte, tenho aprendido e aceitado que o tempo de tudo chega ao fim, exatamente como afirma o Eclesiastes: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. (...) Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora”. O que pressupõe, claro, uma boa faxina, de papéis e de sentimentos.
Vivemos falando do tempo. Que ele cura todos os males, que devemos dar tempo ao tempo, que precisamos “de um tempo”. Que temos pouco ou todo do mundo, dependendo da vizinhança e da situação. Que só ele dirá.
Santo Agostinho lançou o enigma famoso: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei". Estaria o santo filósofo variando? Caetano saiu-se com a bela mas não mais esclarecedora metáfora: o tempo, “compositor de destinos”.
Tamanho seu sucesso no hit parade ao longo dos séculos, ele, por fim, virou mercadoria. Vendemos nosso tempo à vida moderna, mas é como se, com essa operação, comprássemos um título de um clube exclusivo. Somos tão mais conceituados quanto menos tempo temos, de preferência porque trabalhamos muito, porque somos utilíssimos neste mundo em que as individualidades são facilmente descartadas e podemos perder rapidinho nosso posto. Às vezes, damo-nos conta de que o tempo está passando e de que não fizemos nada – casar, comprar bicicleta (o que seria uma medida muito inteligente e ecológica, diga-se de passagem), casa, carro, carrão, computador, celular.
Em lugar disso, alguns de nós perdem(os) tempo disparatadamente curtindo o ócio. Tomando café mais devagar, jogando conversa fora, apurando o leite na panela até ele virar doce, ralando mandioca para fazer um bolo, que dureza...
Foi meu amigo Carlos quem me chamou a atenção para minha relação diferenciada com o tempo, justamente por causa de um bolo de macaxeira, feito na véspera para sua visita. Não que eu não seja uma paulistana neurótica, que não sabe viver sem fazer pelo menos duas coisas ao mesmo tempo, que vive correndo com prazos, trabalha bem sob pressão e está muito adaptada à loucura nossa de cada dia. Mas acho que cansei de correr e também de acumular coisas e passados inúteis. Estou ficando velha? Claro! Também.
A gente gasta uma energia enorme para manter tudo sob controle, trabalha muito para acumular cada vez mais e mantém relacionamentos aos quais não consegue prestar atenção (e não percebe como muitos são verdadeiras roubadas, que merecem um descarte imediato). Se houvesse tempo para olhar tudo com mais vagar, nossa qualidade de vida seria outra – e não estou falando só de menos poluição, alimentação mais saudável, menos barriga etc. Refiro-me à qualidade das relações – com os outros e consigo.
Por isso acho tão bonito quando o Renato Teixeira (ou o Almir Sater, ou a Bethânia) canta o sabor das massas e das maçãs, já sem nenhuma pressa. E embora quase todo mundo siga um ciclo parecido – amar, chorar, chegar, partir –, é reconfortante lembrar que cada um compõe a sua história e tem o dom de ser feliz. Cada um na sua hora e vez, cada um a seu tempo.
25 de outubro de 2008

O funcionário-padrão


Bico calado,
Muito cuidado
O homem vem aí

Chico Buarque/Francis Hime

Essa eu preciso contar, com a licença da minha xará Mayumi. É curtinha. Falávamos outro dia das delicadas relações de trabalho, sobre a expectativa que as empresas têm de seus funcionários, a dificuldade que normalmente existe em se perguntar aos mesmos funcionários o que a empresa pode fazer para mantê-los etc. etc., quando nos colocamos a seguinte questão: qual será o funcionário ideal para uma empresa (pensando, claro, numa empresa tradicional e burocrática, e burocrática no sentido de inflexível, ineficiente e indiferente às necessidades das pessoas)?
Então ela me contou uma história ótima, que cheiraria a realismo fantástico não fosse tão real. Numa empresa em que trabalhou (cujo nome não convém revelar), Mayumi tinha de ouvir que, em vez de protestar contra o que considerava injusto, precisava “tomar mais café” com os outros funcionários – ou seja, ela estava sendo chamada de anti-social. Um pouco mais de grosseria e diriam que ela era “mal-casada” (isso faz lembrar alguém?). Nada mais natural num lugar em que mensalmente era eleito um “funcionário-modelo” (e é inevitável lembrar daqueles quadrinhos com fotos na parede do McDonald's ou, pior ainda, daquele prêmio concedido na época da ditadura ao “operário-padrão” por uma emissora de TV), exemplo para todos os outros.
O mais fantástico, contou minha xará, foi, numa ocasião, o prêmio ter sido dado a uma moça que chegava e saía no horário certo, nem mais nem menos, não fazia horas extras, não se envolvia muito com o trabalho e jogava paciência o dia inteiro. E todo mundo sabia disso. Mas por que alguém iria se indignar? Afinal, as empresas, em sua maioria, fazem um favor aos funcionários, com tantos benefícios, possibilidade de aprender algo (mas dificilmente de mudar de cargo) – especialmente levando em conta o número de desempregados à porta.
Empresas são empresas, todos já ouvimos isso. Na verdade, quem faz a diferença numa empresa são seus líderes. E se eles encampam a idéia de que é fácil substituir alguém, de que mais importante que trabalhar é fingir que se trabalha, de que é possível tirar o máximo de um funcionário (que não joga paciência, apenas trabalha) levando-o à exaustão psicológica, então não há nada que possamos dizer.
Eu? Eu não disse nada.

09 de julho de 2008
Dia da Revolução Constitucionalista de São Paulo

Sob a pele de carneiro


Novamente aproveitando um “gancho” musical, o grupo/dupla Palavra Cantada tem uma canção fantástica sobre a necessidade de tolerância e de aceitação das diferenças. Chama-se “Pé de nabo”. Segundo Sandra Perez e Paulo Tatit, embora existam alguns legumes (e também pessoas) difíceis de engolir, “até mesmo um pé de nabo tem alguma coisa boa”. Como já disse em outro momento, todos temos alguma qualidade. Engrosso, portanto, o coro dos otimistas, acompanhando Sandra ao ritmo do lundu.
Chatos e “nabos” existem aos montes e nada impede que sejamos o chato da vez, por mais bacanas que nos consideremos. Alguns chatos até viram personagens – e por isso mantenho vários deles na minha fila de escritos. Mas há um chato em especial que me parece mais difícil de encarar e que pouca serventia tem: o pelego.
Na verdade, ele não é propriamente chato, no sentido estrito. Não é necessariamente aborrecido, enfadonho, irritante. O pelego nos deixa no ar. Desperta uma certa vontade de lhe dar uns sopapos, mas nem sempre sabemos como fazê-lo, porque ele quase sempre é sonso, escorregadio – nossa dificuldade em agarrá-lo (e daí dar-lhe uns sopapos) vem de não conseguirmos defini-lo.
Não que não o possamos reconhecer. Mas às vezes isso demora. Algumas pessoas aparentemente tranqüilas, pouco opiniosas, podem esconder uma natureza “pelega”. Justamente porque pelego é o nome que se dá à pele de carneiro que “encobre” os arreios nas montarias, aumentando o conforto dos cavaleiros. Mais apropriada ao caso contemporâneo, especialmente no ambiente de trabalho, é a acepção que relaciona o pelego ao espião (especialmente nos sindicatos) e ao bajulador, o próprio capacho. Que por sua vez se esconde sob o discurso atual de “capacidade de adaptação à empresa”, daqueles que “vestem a camisa” – provavelmente feita de lã. E quem agüentaria o calor de tal indumentária num país tropical? Adivinhem.
Pela sua tendência natural ao ocultamento, ao não comprometimento, entre os diferentes tipos de puxa-saco, o pelego é pouco brilhante. Normalmente não chama a atenção, não se destaca em meio ao grupo. Sua invisibilidade torna-o pouco ameaçador, especialmente para seus superiores, e também livra-o de olhares desconfiados durante algum tempo, como o velocino de ouro buscado por Jasão. Em tempo: entre os gaúchos, pelego é um passo errado na dança. Poderíamos, portanto, criar um novo mandamento, dando conta de todos esses pecadilhos: “não pelegarás”.
Algo a ser dito em favor do pelego? Se levarmos ao pé da letra o que se diz do “pé de nabo” de Tatit e Perez, alguma coisa positiva há de haver. Por exemplo, a possibilidade de ele se tornar uma personagem literária. Afinal, foi mesmo a releitura de Érico Verissimo que deu a idéia para falar em tal figura.
Podemos imaginar a cena: a garbosa figura do capitão Rodrigo Cambará, todo sorrisos, todo desafio, surge na cidade de Santa Fé, onde conquistará o amor das mulheres, a admiração de uns poucos, a inveja de muitos. E debaixo dele, todo comprimido entre cavalo e cavaleiro, o incansável pelego. Convenhamos que, colocado ali, no lugar mais alto onde ele conseguiu chegar, e até porque vive da fama alheia, ele até parece bastante guapo...

24 de abril de 2008

Qual é a do patinho


Um dia desses, em meio a um jantar com feijão tropeiro, quibebe e muitas risadas, um amigo meu, bonitíssimo, falando acerca de leituras feitas na infância, disse que sua história predileta era a do patinho feio. Ele, que hoje é uma beldade, identificava-se com a criaturinha desengonçada, que de pato não tinha nada e que ao final descobria ser um lindo cisne, para alegria de todos os que gostam de um final feliz.
Mesmo tendo dificuldade em associar meu amigo ao feioso patinho, entendo o que ele quer dizer. Quem já não sofreu na pele algum tipo de discriminação? Quem já não quis, e tentou em vão, encontrar sua turma? Ser aceito pelo que é? (Quase posso ouvir algumas vozinhas dizendo: comigo nunca aconteceu! Ignorem-nas: são vozes isoladas.)
Há quem diga que o primeiro passo para ser aceito pelos outros é aceitar a si mesmo como é, gostar de si, ser capaz de ficar sozinho consigo e gostar da própria companhia. Mas vá dizer isso a um adolescente cheio de espinhas e complexos. Ou para uma dona de casa infeliz, que vê sua juventude se esvair, a idade e as gorduras localizadas chegarem. Tudo isso num contexto em que mais importante que ser é ter ou, pelo menos, parecer que tem. O antídoto é o adolescente gastar o que não tem para parecer descolado, com roupas, sapatos e celular da moda. A dona de casa pode participar de um programa para transformar-se em uma outra mulher, como o inacreditável Swan, que não por acaso alude à história do patinho feio, ou versões mais modestas do programa, ligadas a outra história, a da Cinderela. Seja como for, o que essas pessoas costumam esquecer é que amor-próprio é uma conquista demorada e que não está exatamente ligado à aparência. Muita gente consegue uma imagem aceitável para a sociedade e continua infeliz, necessitando desesperadamente da aprovação alheia, sem a qual parece impossível viver. Pior ainda quando, na negação de si, deseja ser outra pessoa.
Que precisamos dos outros, creio que disso não há dúvida. Não é só bíblico: é humano. O outro é nosso espelho, por mais cruel que seja a imagem devolvida. Clarice Lispector, em A paixão segundo G.H. e em outros momentos de sua literatura, fala da grandeza de precisar. Mas precisar não é necessariamente depender. Já pensaram que somos nós que mostramos ao outro por que gostar de nós, não o contrário? Não podemos esperar a vida inteira que alguém goste de nós para então descobrirmos que temos algum valor. Todos temos.
Com relação à nossa necessidade do outro, também é preciso pensar que não é possível agradar a todo mundo, até porque seria necessário uniformizar o gostar – o que às vezes parece possível quando a mídia bombardeia padrões de beleza e de comportamento sobre nós. Mas a beleza humana está justamente na sua diversidade, física e psicológica. Que sorte a nossa haver tantos tipos humanos e tantos nichos relacionais! E também as afinidades eletivas – um oásis no meio de tanta sociabilidade forçada e muitas vezes desagradável a que estamos sujeitos no dia-a-dia. Que bom haver em nossa vida espaço para a gentileza, o respeito e as pessoas com quem escolhemos conviver, rir, apreciar um bom feijão tropeiro!
E, ainda por cima, de vez em quando, a gente desabrocha, vira avis rara e ouve que éramos tudo o que alguém queria encontrar. Somos reconhecidos. Temos, de repente, uma importância insuspeitada. Mas, para que isso aconteça, é bom termos a “alma pronta” (de novo Clarice). Porque, com ela, é como se, apesar da surpresa que o reconhecimento provoca, já estivéssemos preparados para isso. Do contrário, talvez não entendêssemos nem atendêssemos ao “chamado”.
É o que acontece com o patinho feio e outros esquisitos/deslocados das histórias que agradam quase toda gente. Depois de muita rejeição e sofrimento, alguém lhe lança um olhar redentor e ele assume seu verdadeiro lugar. “Torna-se” belo, embora continue sendo o que sempre foi. Não precisou ficar diferente, não passou por nenhuma cirurgia plástica; apenas desabrochou e encontrou sua turma. E, bastante naturalmente, partiu com os outros, singrando as águas: foi ganhar o mundo.

11 de março de 2008

Amplidão


Sobre essas coisas de palavras, há muitos autores interessantes a falar nelas. Às vezes, com um tom jocoso, como Veríssimo (o filho) e Sabino, que têm textos ótimos sobre o sentido e o som que as palavras "devem" ter; outras vezes, mais circunspectos (mas nem por isso menos literários), como Barthes e Wittgenstein, tratando das maravilhas e armadilhas da linguagem.
E como explicar o gosto por determinadas palavras? É, claro, questão "de gosto", e gosto, dizem, não se discute. Eu, por exemplo, prefiro quase sempre a palavra amplidão a imensidão. Muitas vezes, querem dizer a mesma coisa. Mas uma tem não sei que de algo que se lança no espaço, de movimento, que me parece faltar na outra. E, como se há de perceber em outros escritos, gosto das coisas "moventes".
Por isso é que diante de alguns prodígios, como a queda irresistível das cataratas do Iguaçu, pontilhadas pelo arco-íris, vem-me a idéia de amplidão, e não só do que é imenso. Assim com o rio São Francisco encontrando o Atlântico. Ou o próprio mar, que é imenso, mas atordoa o olhar em sua amplidão. As serras, os campos. O céu estrelado. E a qualidade se espalha e alcança também o que é humano. Amplo é um sorriso que ganha a cara toda. Ampla é a esperança. Alguém pode escolher ter ou não largueza de espírito, uma alma ampla ou estreita.
Há muita gente apequenada por aí, mas tenho o privilégio de conhecer outras tantas pessoas de uma amplidão indiscutível, que nem sabem que são grandes assim. Vejam que não estou falando de uma generosidade eventual, de uma comiseração instantânea etc. etc. Estou falando de um estado de espírito permanente, de uma opção de vida. Mais que uma resistência, uma não desistência. Percebem a diferença? Pessoas que têm uma doença crônica, gravíssima, mas continuam animando os que as cercam como quem não tem nada a temer. Outras que sabem somar esforços, sem julgar ninguém. Outras ainda que são especialistas em abrir caminhos, oferecer oportunidades, desinteressadas em ganhar qualquer coisa em troca, seja um elogio, seja uma recompensa. E outras – este é o melhor exemplo – que, de uma hora para outra, perderam tudo e souberam prosseguir.
Quero apenas citar o exemplo da mãe de uma amiga, que conheci quando aceitei o convite para passar o Natal com sua família, longe de São Paulo e de uma crise doméstica. Durante todo o tempo que estive lá, embora soubesse pelo que eu estava passando, ela foi discretíssima, como só podem ser as pessoas que têm um verdadeiro refinamento espiritual. Integrou-me à sua família com naturalidade, como se nos conhecêssemos há anos, e na noite de Natal surpreendeu-me com um presente feito por ela mesma: uma delicada fronha de laise com meu nome e um simbólico sol bordados à mão. E fez-se luz.
Mas o caso é que há alguns meses, quando publiquei uma resenha acerca do Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, soube que ela perdeu a visão. Minha amiga leu a resenha e contou então que a cegueira viera pouco a pouco e que sua mãe estava reaprendendo a ver usando os outros sentidos. Serenamente, apesar das dificuldades. Afora o choque da notícia, pensei logo que uma pessoa como ela só poderia reagir assim a um tal golpe: sem jamais desistir, sem se lamentar, seguindo adiante como quem vê o que mais ninguém vê. Juro que não vou terminar com a lengalenga de "isso é para valorizarmos o que temos", "não devemos reclamar" etc.
Porque a única coisa que posso dizer já foi dita, de outro jeito: a amplidão da vida, a nossa infinitude dependem do alcance do nosso olhar. E daí o mar, o horizonte, a coragem, a humanidade.

04 de fevereiro de 2008

Ser o que soa



Bem recentemente, ouvi uma nova gravação de uma canção de Caetano Veloso de que gosto muito. Foi Tony Garrido quem regravou Muito romântico; mesmo sem o arranjo de vozes quase celestiais da versão que eu conhecia e admirava, a letra da canção continua a me inspirar. Gosto sobretudo da idéia de "ser o que soa", de alguém que não doura pílula, que canta somente o que pede pra se cantar e deseja que todos possam brilhar num cântico, numa grande comunhão.
Ser o que soa, e não ser o que é. Por que a profecia em lugar da supremacia? Desafio em vez de pleno controle? Pensando no jogo de palavras de Caetano, fui atrás do verbo eleito. Entre outros significados, "soar" é retumbar, repercutir. Produzir ruído áspero. Também é, por extensão semântica, tornar público, impressionar os ouvidos. Para o compositor, ações típicas daquele que é muito romântico – e, provavelmente, pelo que indica a canção, pertencente a uma geração mais "condoreira" (que teve como seu maior expoente justamente Castro Alves, um conterrâneo de Caetano Veloso), mais afeita às questões sociais e políticas.
Esta é uma idéia que me encanta: o romantismo político. Não no sentido da falta de praticidade, da imaginação sobreposta à razão, mas no sentido de se voltar ao sujeito, ao povo, à inteireza humana. No sentido de não temer a adversidade, de fazer denúncias sempre que necessário. Como um profeta mesmo (e não à toa a palavra professor também se relaciona – ou deveria se relacionar – a essa idéia). Ou como o verdadeiro representante das questões públicas, o político in natura. Correndo o risco sempre de ser o chato da turma, o reclamão, o inoportuno – ossos do ofício de quem não se conforma com a situação imposta.
Muita gente no Brasil tem percebido que esse é um discurso atraente – como é ano de eleições, há quem conclame o eleitor a cobrar exatamente dos políticos eleitos aquilo que se prometeu. Acontece apenas que, aqui, reclamar não basta – nossa Constituição protege com unhas e dentes os órgãos e cargos públicos. Se, de um lado, ofender funcionário público dá cadeia, de outro, colocar um deles atrás das grades pode ser quase uma missão impossível – vejam o caso do promotor mauricinho que assassinou um rapaz no litoral de São Paulo: livre, leve, solto. E impune. Para se processar uma prefeitura, por exemplo, é preciso ter paciência e dinheiro e não é possível recorrer a um tribunal mais ágil, como o Especial Cível. Quando o governo faz, portanto, esse tipo de campanha – "cidadão, reclame seus direitos" –, tudo parece uma grande piada, porque o resultado todos nós, no fundo, já conhecemos.
Obviamente, as coisas já foram piores – não podemos perder nunca essa dimensão histórica. Mas também não podemos "nivelar por baixo", especialmente quando se trata de um governo de origens populares, eleito democraticamente, carregando a bandeira da "esperança que venceu o medo". E a piada oficial aproxima-se da farsa quando vemos dezenas de pesquisas (uma forma de não deixar repercutir o descontentamento, nada muito diferente da propaganda da época da ditadura) que mostram que o brasileiro aumentou seu poder de compra. Na verdade, o que aumentou foi a oferta de crédito (que talvez se retraia com o aumento do IOF), não o salário mínimo. A desigualdade social continua, mas agora os pobres podem financiar seu jogo de sala em dois ou três anos. A classe média também empobrecida pode comprar um carro em quatro anos, um apartamento a perder de vista. Aposentados podem tomar empréstimos para pagar despesas básicas. É um novo milagre brasileiro, agora sob uma "democracia". E num país rico, em que centenas de milhares mal têm o que comer (mostrando o quão contemporâneo é o filme Ilha das flores, de Jorge Furtado), ninguém pensa no que significa a verdadeira "qualidade de vida" no país e no planeta – para isso, o governo brasileiro aposta, por exemplo, em "créditos de carbono": dinheiro oferecido pelos países mais poluidores para que eles possam continuar poluindo. Temos de ouvir como será ótimo receber esse dinheiro, que será utilizado em mais obras do Programa de Aceleração do Crescimento, com Bolsas de todo tipo para a população, blá-blá-blá. Só se esquece de dizer que o dano causado ao meio ambiente, que continuará sendo realizado com o pagamento dessas novas "indulgências", é praticamente irreversível.
Nesse panorama de tentativas de silenciar de um lado e de assentimento de outro, claro que retumba como um trovão a tentativa de um único homem de chamar a atenção de todos para um problema que é de todos. Quando o bispo Dom Luiz Cappio realizava há pouco sua segunda greve de fome (a primeira foi em 2005) contra as obras de transposição do rio São Francisco, muitos discutiram se ele era mártir ou não, pecador ou não (uma vez que a Igreja Católica condena o suicídio), vaidoso ou não, conveniente ou não, redundante ou não. Mas poucos quiseram ver em seu gesto aparentemente silencioso um atrevimento político, uma cobrança ao tal governo popular de suas antigas promessas, como a de ouvir a população ribeirinha num assunto que lhe diz respeito diretamente.
Dom Luiz apenas fez aquilo que cada um de nós deveria fazer: um gesto simples de recusa ao estado a que chegamos. Imaginem, então, se milhares de brasileiros tomassem de repente consciência da sua real importância para este país e protestassem de forma mais contundente contra a desigualdade, a miséria, a prostituição infantil, a exploração indiscriminada de nossas matas e de nossos recursos naturais. Quem sabe nos livrássemos de vez do diagnóstico certeiro de Sérgio Buarque de Hollanda, feito há mais de 70 anos, de que no Brasil a democracia é um lamentável mal-entendido?
O ruído, com certeza, seria enorme.

14 de janeiro de 2008

À guisa de apêndice

Matutei bastante sobre como postar textos no meu outro blog. Aí comecei a achar que ia misturar alhos com bugalhos.
Acabei criando este aqui, para postagem de croniquetas, a maioria já conhecida dos chegados. Vai soar a repeteco, mas é como organizar bunitim uma gaveta mais que olhada. Ah, sim, somente com os textos de que gosto mais, pra não empapuçar geral...