sábado, 12 de junho de 2010

O vivido de cada um

Uma noite dessas, em uma bela conversa com um amigo de longa data, ouvi-o falar das grandes mudanças que estava operando em sua vida, mesmo tendo construído uma carreira sólida e para lá de respeitável. Tudo porque sua alma está cobrando mais espaço, novos voos e paisagens.
Em nossa conversa, ele me fez lembrar de um texto que escrevi há quase três anos, que conflui com minhas últimas postagens e que resolvi agora publicar aqui, em homenagem a esse recomeço. E cá fico eu, contente de compartilhar da nova fase, torcendo sempre pelo seu sucesso, aonde for.

Toda alma de artista quer partir

Ainda pensando na propriedade das letras de Chico Buarque, detenho-me sempre nestes versos de Na carreira (canção composta com Edu Lobo para o espetáculo O grande circo místico, do Balé Guaíra): “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ A arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. É a mais autêntica proclamação de liberdade: o artista não se prende às amarras institucionais, a inquietude de seu espírito leva-o a se lançar no desconhecido, corajosamente, amorosamente.
Longe de me achar um esprit artistique, lembro-me, contudo, de quando deixei um trabalho estável, de longa data, bem remunerado para a época, para me aventurar em um território pouco conhecido; o espanto das pessoas foi grande, creio que com razão. O motivo da mudança era simples, embora nem sempre bem compreendido por aqueles que se espantavam – achava que não tinha mais a contribuir com aquele lugar, nem a aprender. E parti.
Andei por muitos lugares, como se participasse de uma trupe de mambembes, vivendo durante anos com trabalhos os mais diversos, porque havia escolhido justamente um trilhar de oportunidades voláteis. Como outros amigos que seguiram a mesma trajetória, fui inventando a cada passo o caminho a percorrer. Foram anos assim.
Quando resolvi deixar a casa de minha família, também fiz algo parecido. Não tinha um trabalho fixo, mas tinha amigos e, portanto, guarida (agora é que me ocorre que amigos são imponentes e acolhedores como casas). Depois fui fazer meu vôo solo e tinha menos condições ainda de me manter – dessa vez, sozinha e desempregada. Muitas dificuldades depois, ainda insisti nos trabalhos autônomos. E fui levando, levando...
Às vezes, voar por longas distâncias cansa. E é preciso pousar em algum lugar para retomar o fôlego. Por isso é que passei por algumas instituições para respirar – e quase sufoquei. Passarinho desgovernado, dei várias topadas na minha fuga em direção ao azul da manhã. E mesmo assim me espanta ouvir que sou “cigana”. Acho engraçado, poético.
Toda vez que resolvo pousar ou partir, sempre levo em conta o que diz minha alma – se ela está apertada, solta, feliz. Coisas da intuição, que cada vez mais aprendo a respeitar. Também sinto a direção dos ventos (aliás, uma das coisas de que mais gosto na vida é sentir o cheiro do vento que precede a chuva, algo que me devolve à natureza), traço planos de vôo, de caminhada, de navegação. O que não quer dizer que não continue batendo de frente com outras vontades, já que caminhar junto nem sempre é possível – há quem queira nos atropelar, ultrapassar etc. Mas nada disso invalida a viagem; afinal, a paisagem é mesmo linda.
Não ter pouso pode ser entendido como desassossego. Mas também pode significar inconformismo. Tudo depende do estado da nossa alma, de como queremos ver a realidade. Tem gente que insiste em ser infeliz onde quer que se encontre, por mais estável que seja sua vida. É como se a infelicidade fizesse parte de sua bagagem como algo imprescindível, a escova de dentes, por exemplo. Claro que o desassossego pode levar a criações maravilhosas, e aí está Pessoa que não me deixa mentir.
Tão importante como saber a forma de chegar é saber a hora de partir – de uma festa, de uma situação, de um relacionamento. Por mais difícil que seja, é uma forma elegante de saber dizer “não”, “c'est fini”, “acabou”. E é esse respeito pelo tempo de uma coisa que faz que ela se torne eterna, que nunca morra, mesmo já tendo acabado. Lembranças, amigos, amores, experiências: ninguém pode nos roubar o vivido.
E por isso podemos continuar por aí, partindo, voltando, tendo o mundo todo para nos apaixonar...


13 de novembro de 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário