domingo, 27 de junho de 2010

A arrogância faz "crescer" os pequenos

Ela está em toda parte. Diferentemente da inveja, seu pecado-irmão, adora aparecer. E quando o faz, ajuda a avultar os espíritos menores, apequenados.
A arrogância é típica dos inseguros, por mais que faça crer o contrário. Basta que eles suponham um pouco mais de saber e, pronto, logo se colocam a desancar quem lhes parece inferior. Muitas vezes, trata-se de uma espécie de vingança de quem se sentiu diminuído algum dia. Quando se une à inveja, então, é capaz de estabelecer o caos nas relações humanas, por meio de atitudes persecutórias e inflexíveis. Não se toleram a fala do outro, a escrita do outro, o trajar do outro, a canção do outro, a existência do outro.
Democrática porém, a arrogância, também conhecida como soberba, não escolhe profissão, ocasião ou classe social. Encontramo-la nos consultórios médicos, escolas, escritórios, redações, bares e ruas.
O grande perigo apresentado por ela é sua aparente normalidade. Oculta sob a crítica (que, no mais das vezes, pode ser saudável), só faz atestar nossa frágil condição de animais superiores que se ameaçam mutuamente, todo o tempo.

domingo, 13 de junho de 2010

Bizarras cenas hospitalares

Parece que as vocações estão mesmo (ou sempre) em pauta, inclusive como pano de fundo.
Na última sexta, estive na Santa Casa de Misericórdia para uma consulta de emergência com o clínico geral, já que a tosse canina teimava em não me deixar. Como queria descartar rapidamente a hipótese de uma pneumonia, lá fui eu, pronta para encarar horas de espera, mesmo em se tratando de um espaço reservado para "conveniados", e não reles mortais desprovidos de plano de saúde.
Que bom é ter saúde! Somente nessas horas de longa espera, burocracia e descaso é que nos damos conta de como ela é importante. Bom, esperei quatro horas para saber que não tinha pneumonia. E assisti a várias cenas bizarras. Primeiro, na sala de inaloterapia (lindo nome), uma enfermeira fez jorrar sangue do braço de uma paciente; uma outra profissional de saúde, provavelmente desafeto seu, disse aos presentes, assim que ela saiu para buscar mais gaze, que ela vivia dizendo que "nunca fazia besteira"; numa segunda saída da perfuradora de braços, incitou a paciente a reclamar junto à direção do hospital. E eu ali, com meu inalador, vendo tudo aquilo, literalmente sem respirar.
Depois de assistir por um bom tempo ao footing dos médicos, que pareciam não ter nada para fazer, embora houvesse cerca de 40 pessoas no local, vi o diretor do hospital chegando ligeiro, abrindo portas de consultórios e flagrando dois médicos no maior bate-papo num deles, a portas prudentemente fechadas. Parecia uma atitude louvável, colocar todo mundo para trabalhar, não fosse a grande coincidência, minutos depois, da chegada da equipe da Rede Globo, que se apropriou de um dos poucos consultórios para fazer dele uma locação, onde teve lugar uma entrevista para um dos noticiários da emissora.
Por fim, de posse dos exames de raio-X, quando fui atendida pela médica (que não era a mesma do primeiro atendimento, pois seu turno há muito já acabara), recebi a notícia de que não se tratava de pneumonia e também a receita de uma medicação que parece não existir. Explico: ela receitou fluimicil, o nome usado pelos genéricos da acetilcisteína, numa dosagem e formato que não encontrei em laboratório nenhum - comprimidos de 200 mg. Até onde pude ver, só há na forma de xarope, solução injetável e granulado. Claro, como não sou nenhuma especialista, pode haver alguma forma rara do medicamento, que poucos, como a doutora que me receitou, conhecem. Quem sabe?
De qualquer modo, saí de lá com a pergunta: o que será que levou essas pessoas em especial a escolherem a carreira médica? Amor pela humanidade é uma hipótese que, de saída, eu descartaria (com exceção de um único médico que vi ali, atendendo de forma incessante e paciente). Porque, com um pouco mais de capricho no roteiro, gritos nos corredores e maquiagem adequada, isso poderia ser um filme de terror. Ou, pelo menos, um episódio de CSI.

sábado, 12 de junho de 2010

O vivido de cada um

Uma noite dessas, em uma bela conversa com um amigo de longa data, ouvi-o falar das grandes mudanças que estava operando em sua vida, mesmo tendo construído uma carreira sólida e para lá de respeitável. Tudo porque sua alma está cobrando mais espaço, novos voos e paisagens.
Em nossa conversa, ele me fez lembrar de um texto que escrevi há quase três anos, que conflui com minhas últimas postagens e que resolvi agora publicar aqui, em homenagem a esse recomeço. E cá fico eu, contente de compartilhar da nova fase, torcendo sempre pelo seu sucesso, aonde for.

Toda alma de artista quer partir

Ainda pensando na propriedade das letras de Chico Buarque, detenho-me sempre nestes versos de Na carreira (canção composta com Edu Lobo para o espetáculo O grande circo místico, do Balé Guaíra): “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ A arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. É a mais autêntica proclamação de liberdade: o artista não se prende às amarras institucionais, a inquietude de seu espírito leva-o a se lançar no desconhecido, corajosamente, amorosamente.
Longe de me achar um esprit artistique, lembro-me, contudo, de quando deixei um trabalho estável, de longa data, bem remunerado para a época, para me aventurar em um território pouco conhecido; o espanto das pessoas foi grande, creio que com razão. O motivo da mudança era simples, embora nem sempre bem compreendido por aqueles que se espantavam – achava que não tinha mais a contribuir com aquele lugar, nem a aprender. E parti.
Andei por muitos lugares, como se participasse de uma trupe de mambembes, vivendo durante anos com trabalhos os mais diversos, porque havia escolhido justamente um trilhar de oportunidades voláteis. Como outros amigos que seguiram a mesma trajetória, fui inventando a cada passo o caminho a percorrer. Foram anos assim.
Quando resolvi deixar a casa de minha família, também fiz algo parecido. Não tinha um trabalho fixo, mas tinha amigos e, portanto, guarida (agora é que me ocorre que amigos são imponentes e acolhedores como casas). Depois fui fazer meu vôo solo e tinha menos condições ainda de me manter – dessa vez, sozinha e desempregada. Muitas dificuldades depois, ainda insisti nos trabalhos autônomos. E fui levando, levando...
Às vezes, voar por longas distâncias cansa. E é preciso pousar em algum lugar para retomar o fôlego. Por isso é que passei por algumas instituições para respirar – e quase sufoquei. Passarinho desgovernado, dei várias topadas na minha fuga em direção ao azul da manhã. E mesmo assim me espanta ouvir que sou “cigana”. Acho engraçado, poético.
Toda vez que resolvo pousar ou partir, sempre levo em conta o que diz minha alma – se ela está apertada, solta, feliz. Coisas da intuição, que cada vez mais aprendo a respeitar. Também sinto a direção dos ventos (aliás, uma das coisas de que mais gosto na vida é sentir o cheiro do vento que precede a chuva, algo que me devolve à natureza), traço planos de vôo, de caminhada, de navegação. O que não quer dizer que não continue batendo de frente com outras vontades, já que caminhar junto nem sempre é possível – há quem queira nos atropelar, ultrapassar etc. Mas nada disso invalida a viagem; afinal, a paisagem é mesmo linda.
Não ter pouso pode ser entendido como desassossego. Mas também pode significar inconformismo. Tudo depende do estado da nossa alma, de como queremos ver a realidade. Tem gente que insiste em ser infeliz onde quer que se encontre, por mais estável que seja sua vida. É como se a infelicidade fizesse parte de sua bagagem como algo imprescindível, a escova de dentes, por exemplo. Claro que o desassossego pode levar a criações maravilhosas, e aí está Pessoa que não me deixa mentir.
Tão importante como saber a forma de chegar é saber a hora de partir – de uma festa, de uma situação, de um relacionamento. Por mais difícil que seja, é uma forma elegante de saber dizer “não”, “c'est fini”, “acabou”. E é esse respeito pelo tempo de uma coisa que faz que ela se torne eterna, que nunca morra, mesmo já tendo acabado. Lembranças, amigos, amores, experiências: ninguém pode nos roubar o vivido.
E por isso podemos continuar por aí, partindo, voltando, tendo o mundo todo para nos apaixonar...


13 de novembro de 2007