sábado, 26 de novembro de 2016

Eu canto porque o instante exige

Ontem quis contar ao marido uma história sobre minha relação com o canto. Não consegui. Talvez não fosse a hora.
Tive essa vontade porque outro dia comentávamos o documentário Happy, de Roko Belic, que ele e eu assistimos, cada um num dia. Muitas coisas ali eu já intuía e praticava. Mas as histórias alheias de dor, superação e descoberta de si sempre me levam lágrimas aos olhos, como a de uma mulher que havia sido linda, e após ter sido atropelada por uma picape tem a beleza destruída e o passado de abuso todo trazido à tona. Resultado: ela se agarrou à tarefa de cuidar dos filhos, ao trato de animais (os sempre maravilhosos caballitos), olhou para si mesma e retomou a vida, com unhas e dentes. Abandonada pelo marido, que não deu conta do desastre alheio, encontrou um novo amor, com o lindo nome de Happy. Demais, demais, demais!
A ideia mais bacana do documentário, na minha opinião, é a do fluxo. Eu já usava essa expressão, estar no fluxo, emprestada da minha amiga Marisa, para falar da presentificação, da gratidão, da aceitação - é quando as coisas começam a acontecer, porque nos movemos, porque aceitamos o que é dado mas nos abrimos ao que vem. No documentário, estar no fluxo também tem a ver com estar presente, mas associado àquilo que nos dá prazer. Praticar atividades físicas, ajudar alguém, desenvolver um talento.
Foi aí que me veio a história do canto, do que significa para mim. Desde muito pequena, sempre gostei de cantar. Sem nenhuma pretensão artística, apenas porque me espanta os males, me liberta. Desde sempre. Quando não canto, quando falo, minha voz é meu salvo-conduto. Por isso, na época em que estive ligada a uma igreja, e os pretensos cantores do coral faziam caretas ao me ouvir cantarolar, aquilo me doía como uma injustiça. Quando eu falava, muita gente torcia o nariz: "metida!". Até um namorado que lá tive, músico "abençoado", não me estimulava de nenhum modo a cantar ou a falar. Ninguém queria me ouvir na igreja. Então, saí.
Fui redimida nos círculos laicos. Muita gente dizendo que eu devia trabalhar com a voz, ir para o teatro, para a rádio. Uma vez, numa reunião na casa de amigos, cantei ao lado de um rapaz que tocava violão. Ele disse que eu cantava bem. Nem levei a sério, mas me apaixonei um pouquinho. Não sei se dá para entender - era como se ele visse a mim, não simplesmente ouvisse/julgasse a voz. Porque ali eu estava inteira, presente, no fluxo.
Depois levei um monte de gente aos karaokês da Liberdade. Quero ouvir as pessoas tirando de dentro de si sua verdadeira voz. Detesto quando rola alguma repressão, velada ou não. Vejo como as pessoas ficam felizes ao cantar sem serem julgadas.
Embora meu marido não tenha parado para ouvir essa história, um dos motivos para casar com ele foi o respeito que ele mostra quando me meto a cantar, nos karaokês ou em casa. Nada de caretas, de julgamentos. Vê que é uma das minhas situações de "fluxo", como bordar, cozinhar, desenhar, e me estimula. Ele vê a mim em minha voz.
Cada vez que o instante exige, portanto, eu canto. E reapareço, e me fortaleço.

2 comentários:

  1. Adoro cantar com você! Saudade imensa das nossas cantorias ao lado do rapaz que tocava violão. Bjs

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    1. Também adoro cantar com você! Mesmo sem o rapaz, que a vida nos dê mais e mais oportunidades de seguir cantando, querida! beijos!

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