Um homem perde a visão em meio ao trânsito de uma cidade qualquer. Poucas horas depois, uma outra pessoa é tomada por uma espécie de “cegueira branca”. Depois outra. E mais outra.
A epidemia de cegueira que acomete a cidade (que está mais para Lisboa – ou outra metrópole qualquer – que a província de Ribatejo, onde Saramago nasceu) é o tema da obra, que vai além do mero fato e se constitui praticamente em uma parábola sobre os sentidos e as relações humanas.
Ficar cego é uma forma de tornar a ver, ou ver com os olhos da alma. Ver com os outros sentidos, ou, ainda, reaprender a sentir. Como Paulo, de cujos olhos, após ter cegado no caminho de Damasco, caíram escamas. Ou, ainda, como Miguilim, o protagonista de Campo geral, que, num dos lances mais poéticos da prosa roseana, tem o seu reolhar o mundo – com as dores e perdas de um rito de passagem particular – simbolizado por um par de óculos que lhes são postos por um senhor (também) de passagem pelo Mutum. Significativamente, é alguém “de fora” que o ajuda a ver, ou ver de novo modo.
De outro lado, não ver o outro é dessignificá-lo. E o outro, sabendo-se não visto, cessa de envergonhar-se por seus maus-feitos e reifica o seu próximo, tornado distante porque não há mais a ligá-los o espelho dos olhos de um e de outro. Como nada significam um para o outro, sequer nomeiam-se mutuamente.
E por que o fariam? Porque nomear é uma forma de compreender, de apreender. Dito de outro modo, de ter sob controle. As personagens permanecem sem nome como se fôssemos convidados a conhecê-las por outras marcas que não as da distinção nominal, do título. Não há a protegê-las o bastião de um nome, de uma história, de uma herança; cobre-as apenas uma cegueira branca, que ilumina, como uma segunda chance. A própria cegueira é uma idéia revista – não lança em trevas: revela.
Somente uma mulher continua a ver, no sentido físico do termo. Por isso passa a guiar os outros, vendo por eles, ao mesmo tempo em que assiste à miséria humana de pessoas reduzidas aos seus mais baixos instintos.
Contudo, a mulher não vê que lidera uma revolução, tão ocupada está em doar-se aos outros. Doa-se, junto com outras mulheres, para a sobrevivência de todos. Mesmo violada, não permite que algo se quebre dentro dela. Caminha em sua integridade no meio do inferno. Deixando de olhar para si, não se vê mais como indivíduo, como alguém com uma história particular; olhando para os outros, vê-se a si mesma como parte da humanidade inteira. Integra-a. Pertence-lhe.
Em alguns momentos, porém, a mulher terá preferido cegar como os outros, para não ser testemunha de tanta iniqüidade. Os outros, de seu lado, podem enxergá-la. Não é apenas uma voz – ela é esteio, a mão que guia, aquela que orienta, a que vê, a que antevê. Nunca foi tão bela, diz, como quem crê, uma outra que, no entanto, nunca a vira.
Quando a visão volta a todos, é ela agora quem vê um céu branco. Talvez por ter exercitado ao limite o postar-se no lugar do outro, talvez por ela mesma ser, ao fim de uma experiência tão singular, “iluminada”. Mas o temor da cegueira dura um momento: a cidade continua ali, diante dos seus olhos, como prova de uma existência que prossegue.
Embora não se perceba à primeira vista, certamente não é mais a mesma cidade, porque não são as mesmas pessoas a habitá-la. Viveu-se ali apenas com a essência das coisas – mesmo tendo sido algo passageiro, um alumbramento, sempre existem, para vivê-lo e vê-lo de novo (em que pese o paradoxo da afirmação, numa obra em que as personagens cegam quase todas), sempre existem, dizia, o déjà-vu, a memória. E os outros.
Texto originalmente publicado no blog Paisagens da crítica, de Julio Pimentel, em 19 de dezembro de 2006
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