quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Se viver, não case

Ou, pelo menos, não se case para ingressar em uma vida doméstica, de puro trabalho reprodutivo. A menos que seja exatamente isso que você queira, e sim, estou me dirigindo às mulheres.
Quando pensei em juntar meus trapinhos pela primeira vez, ouvi do companheiro que ele tinha medo de que a rotina destruísse o relacionamento. Normalmente, é ela a culpada, a rotina, sempre foi o que ouvi dizer. Não nós, não o que fazemos do relacionamento, mas ELA.
Um dos efeitos da pandemia tem sido o número de brigas e separações provocadas pelo exacerbamento do convívio e de uma intimidade sem nenhum sex appeal. Em princípio, a rotina cinzenta vem retirar o glamour da paixão dos primeiros tempos. Eu até me inclinei a acreditar em parte disso, mas sempre pensei: não pode ser só isso. Por que há casais que conseguem sobreviver ao casamento? Eles sabem driblar a rotina melhor que os outros? A pandemia tornou ainda mais cinzenta a rotina? Quem resiste aos pijamas 24 horas? A não ter tempo de sentir falta do outro?
O que algumas pesquisas têm mostrado, porém, é que as separações durante a pandemia estão quase sempre relacionadas ao desacordo quanto ao trabalho doméstico, com quem faz o quê, uma discussão que muitas vezes não tinha tanta importância, pois as camadas médias, ao menos no Brasil, se valem da terceirização do trabalho reprodutivo e também, com o trabalho fora de casa, mal tinham tempo de pensar no peso que esse trabalho doméstico de fato tem. 
Não faz muito tempo que se popularizou o conceito de sobrecarga mental feminina - junto com a jornada dupla de tantas mulheres, ainda há a ocupação mental com os afazeres domésticos, com os cuidados com a família, o que só aumenta o desgaste. De repente temos nos dado conta de que os homens não se ocupam disso porque sempre há uma mulher que o faça por eles. 
Também temos nos dado conta de que, no final das contas, a culpa pela falência dos casamentos, de ontem e de hoje, não é da rotina. A pandemia iluminadora mostrou que o problema é o papel a que a mulher sempre tem sido relegada, trabalhe ela fora ou não. A rotina doméstica sempre sobra para ela, com exceção de alguns parceiros iluminados, machistas em desconstrução, como dizemos hoje. Ou seja, a pandemia veio como uma cereja de chumbo sobre o bolo dos relacionamentos a dois, um shot concentrado de desigualdades na vida cotidiana de homens e mulheres. E muitas de repente tomaram consciência de qual era o problema - não, não era a rotina pura e simples, mas uma rotina desigual e massacrante para elas, para nós. Eu mesma, quando tive essa epifania, me senti tão liberta por saber que não era a união que me incomodava, mas a atribuição de papéis que não me cabem. 
Porque a ideia de se juntar a outra pessoa para compartilhar a vida, agregar, somar forças, multiplicar o que é bom e dividir o que não é aquela cocada toda, é ótima. Por isso tantas pessoas se unem, por isso é estranho que a simples rotina seja capaz de separá-las. Claro que há muitos casos de diferenças inconciliáveis, visões de mundo díspares - para isso não há muito jeito, e também não é culpa da rotina. Mas a exploração de uma pessoa por outra, ainda que inconsciente, isso sim, é capaz de acabar com qualquer amor, qualquer tesão, qualquer casamento.  
Por isso, reafirmo: se casar, case-se para o compartilhamento de afeto, ideias e experiências, mas não para se escravizar a um costume caduco. Case-se pelo que acredita, e não pelo que foi determinado por outrem. Se sequer suspeitar da armadilha, viva, não case. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O corpo do outro

Tanta loucura nesse mundo de meodeos que é difícil organizar os pensamentos! Além da corrupção desenfreada, da pandemia sem fim, da direita ensandecida, da inflação descarrilada, tem estado em evidência ainda maior um sem fim de abusos do corpo alheio. 
Tamanho o absurdo da distopia que vivemos que, outro dia, ganhou destaque uma briga no Leblon, quando uma mulher, despeitadíssima, atirou garrafas de água contra outra que passava de biquíni num conversível; a de biquíni desceu do carro e desceu a mão na agressora e então foi covardemente atacada, desta vez, pelo namorado da outra, que lhe arrancou a parte de cima do biquíni. A agressora despeitada gravou um vídeo - está na moda agora, vídeos explicativos de agressores - justificando sua ação/agressão como defesa dos bons costumes, porque a outra estaria atentando contra o pudor ao exibir seu corpo malhado no calorão, mesmo noturno, do bairro praieiro carioca. 
Fiquei abismada com a pretensão que tem havido dos recalcados em relação ao corpo alheio. Quem deu o direito a essas pessoas de tocarem de alguma forma o corpo de uma mulher desconhecida? Ou de qualquer outra pessoa? Ou de sequer opinar sobre esse corpo?
A pergunta é retórica, claro, em se tratando de um país machista, sexista e violento, em que as ações contra as mulheres parecem ter sido completamente liberadas neste contexto de horror em que temos vivido, levando ao alarmante aumento do número de feminicídios desde a ascensão bolsonarista e ainda mais durante a pandemia, a denúncias de estupro em toda parte, o que reacende a discussão da legalidade do aborto - e novamente vemos debates absurdos sobre a autonomia que uma menina ou mulher tem sobre o próprio corpo, como no caso da garotinha capixaba que quase não conseguiu abortar após ter engravidado do parente que a estuprava há anos. 
Entre as últimas notícias bizarras sobre o assunto, temos o caso Robinho, jogador de futebol, que participou de um estupro coletivo na Itália e foi condenado pela justiça de lá, mas perigava ser contratado pelo Santos há poucos dias, até que os patrocinadores ameaçaram se retirar caso o contrato não fosse revogado. Além da defesa surreal de Robinho, que alegava não ter feito sexo (só colocado o pau na boca da moça), nem ter feito nada errado além de trair a mulher (só ter se aproveitado de uma moça alcoolizada e fora de si, como os envolvidos reconheceram em conversa grampeada pela justiça italiana), ainda há - embora menos, ainda bem - gente que argumente que há muita maria chuteira por aí querendo se dar bem. Bom, mesmo que fosse o caso, mesmo que a moça fosse prostituta, ninguém tem o direito de sair tocando o corpo dela sem que ela autorize ou esteja consciente. No final das contas, é sempre a mesma história, de como todos têm direito a fazer o que quiserem do corpo feminino, só mudando as circunstâncias. E como, por terem esse direito, os homens, principalmente, saem impunes de tantos abusos. Tudo em nome da normalidade, do costume. No caso de Robinho, praticamente em nome de Deus, que ele evocou diversas vezes nas gravações e em entrevistas, enquanto falava contra o movimento feminista e as mulheres "que nem mulheres são". 
Mas os homens também não querem ser objetificados, apesar da cultura machista do homem que está pronto para todas. Já ouvi de um companheiro que ele não estava sempre a fim, que era preciso criar um clima, e me senti um homem rejeitado naquele momento. Apesar da minha cara de tacho, foi fundamental para ter maior clareza do que é o corpo do outro, que ele não está sempre à disposição do nosso desejo - mesmo que seja um homem! Isso significa que boa parte do que vivenciamos em termos de abuso é resultado de uma cultura, ou seja, algo que pode e deve ser transformado.