Assistimos, outro dia, ao filme Os Meyerowitz: família não se escolhe, produção Netflix com Dustin Hoffman, Ben Stiller, Adam Sandler e Emma Thompson. O início nos deixa tontos, com as falas desencontradas das personagens, que ainda por cima falam de arte como se todo mundo entendesse do assunto - mas logo entramos no ritmo já que isso é tão somente a maneira como as pessoas se comunicam hoje: desencontradamente, aos borbotões, aos solilóquios, sem preocupação nenhuma com quem recebe as rajadas falatórias.
Eu sempre falei muito. Gosto de falar, acho que falo bem, curto um palquinho. Mas também gostava de convencer, de discutir, ou achava que gostava. No fundo, isso me tirava a energia. Meus irmãos mais novos sofreram com essa minha falação convencedora, que não dá espaço para o que o outro tem a dizer, por mais estapafúrdio que nos pareça. Um dia, tive um clique e parei para ouvir mais. É um exercício de concentração também, de estar presente para o outro. Não necessariamente concordo com o que ouço, simplesmente ouço. E vejo como isso é cada vez mais raro, alguém que ouça, que permaneça ali.
No dia a dia, fico cansada só de testemunhar as tentativas de convencimento mútuo, normalmente sem qualquer momento de "audição". As pessoas falam cada vez mais alto com o intuito de calar seu "oponente" (não mais um interlocutor). Dali a pouco, a conversa vira discussão, uma coisa tão sem pé nem cabeça que os falantes nem se lembram mais o que defendem/atacam. É muito chato. Imagino quanta gente já sofreu comigo (embora eu não me lembre de chegar aos gritos numa conversa).
A forma mais simples de encerrar uma discussão ou nem começá-la (pensando em discussão como essa conversa aos brados, e não como debate e troca de ideias) é justamente o silêncio. Ouvir. Porque, embora pareça uma atitude submissa, é uma ação muito pontual, agraciadora para quem a recebe. Quem é ouvido sente-se grato, e nem sabe por quê.
Até mesmo para os casos críticos de faladores bizarros, que pregam a intolerância em suas vertentes diversas, creio que o melhor também seja o silêncio, neste caso usado como arma política, ignorando o que dizem para que suas palavras doentias não ressoem ainda mais, mas agindo para que aquilo que pregam não ganhe força.
Por gentileza ou por protesto, o silêncio é mesmo uma dádiva em dias tão ruidosos.
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
segunda-feira, 19 de junho de 2017
Cansaços
Cansaços há de todo tipo, para todo gosto. Desde preguiça, que não é bem um cansaço, ao pessoano cansaço de existir. Cansamos de situações, pessoas, empregos, comidas, atividades físicas, rotinas. Cansamos, mas normalmente resistimos. A questão mais importante é saber até quando resistir para não desabarmos por completo, de modo irremediável - até nome há para esse ponto do qual não se volta no trabalho, a Síndrome de Burnout, tão bem representada pelo palito de fósforo queimado.
Acho que nunca estive tão cansada. Ao cansaço natural do trabalho intenso sem férias há quase 3 anos, veio juntar-se o cansaço mental das demandas domésticas diárias. Nunca tinha pensado a respeito desse tipo de cansaço, porque estava tão internalizado em mim organizar tarefas que.
Um quadrinho da francesa Emma veio só confirmar a causa de o meu cansaço mental e o de quase todas as mulheres ser tão profundo. Na verdade, eu sempre cuidei apenas das minhas demandas. Hoje, penso automaticamente em todas as demandas da casa, além das minhas e das do meu marido. Se falta algo em casa ou se é preciso fazer qualquer modificação, a ideia é simplesmente jogada no ar, pressupondo-se que eu vou resolvê-la. Parte da culpa é minha, é claro, por tomar a demanda para mim. Mas a outra parte é feita daquela frase tão ouvida em todo lugar: "era só pedir". Só que não.
Entonces, esse cansaço mental triplicado só vem pesar ainda mais sobre o cansaço com o trabalho. E aí acontecem os furos, os esquecimentos, a atrapalhação geral. O questionamento com o que estou fazendo de fato da minha vida e da minha vida profissional. É o que quero? Faço porque gosto, porque simplesmente "aconteceu" ou faço porque preciso pagar as contas?
Quando houve o evento sobre autoestima promovido pelo estúdio de pilates, uma das perguntas feitas pela palestrante era "em qual o momento você se sentiu feliz por ter conquistado algo?". Todas as coisas em que pensei estavam ligadas ao conhecimento, mas sempre como algo dinâmico, em construção, com troca constante - criativo. Não como conferência automática de conteúdo.
É nesse sentido que esses diferentes cansaços se somam e se retroalimentam, levando a um quase completo esgotamento. A única solução que vejo é sair dessa espiral.
Acho que nunca estive tão cansada. Ao cansaço natural do trabalho intenso sem férias há quase 3 anos, veio juntar-se o cansaço mental das demandas domésticas diárias. Nunca tinha pensado a respeito desse tipo de cansaço, porque estava tão internalizado em mim organizar tarefas que.
Um quadrinho da francesa Emma veio só confirmar a causa de o meu cansaço mental e o de quase todas as mulheres ser tão profundo. Na verdade, eu sempre cuidei apenas das minhas demandas. Hoje, penso automaticamente em todas as demandas da casa, além das minhas e das do meu marido. Se falta algo em casa ou se é preciso fazer qualquer modificação, a ideia é simplesmente jogada no ar, pressupondo-se que eu vou resolvê-la. Parte da culpa é minha, é claro, por tomar a demanda para mim. Mas a outra parte é feita daquela frase tão ouvida em todo lugar: "era só pedir". Só que não.
Entonces, esse cansaço mental triplicado só vem pesar ainda mais sobre o cansaço com o trabalho. E aí acontecem os furos, os esquecimentos, a atrapalhação geral. O questionamento com o que estou fazendo de fato da minha vida e da minha vida profissional. É o que quero? Faço porque gosto, porque simplesmente "aconteceu" ou faço porque preciso pagar as contas?
Quando houve o evento sobre autoestima promovido pelo estúdio de pilates, uma das perguntas feitas pela palestrante era "em qual o momento você se sentiu feliz por ter conquistado algo?". Todas as coisas em que pensei estavam ligadas ao conhecimento, mas sempre como algo dinâmico, em construção, com troca constante - criativo. Não como conferência automática de conteúdo.
É nesse sentido que esses diferentes cansaços se somam e se retroalimentam, levando a um quase completo esgotamento. A única solução que vejo é sair dessa espiral.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
Estrangeira
Filha e neta de nordestinos que sou, sempre me incomodei com as "brincadeiras" voltadas aos nordestinos, especialmente aos baianos - o que não quer dizer que eu não as tenha feito, quando criança, seguindo a onda dos amiguinhos, embora com um remorso lá no fundo.
Em São Paulo, o estado com maior número de baianos fora da Bahia e maior número de nordestinos do país, isso é e sempre foi corriqueiro. Baiano é sinônimo de nordestino, baianada é sinônimo de burrice, de barbeiragem. Por extensão, todo nordestino seria afeito a barbeiragens. Não bastasse o horror, a indecência de se dizer isso de toda e qualquer pessoa, seja quem for e de onde for, ainda por cima é uma afirmação injusta com quem trabalha muito, muitas vezes de sol a sol, muitas vezes em condições precárias e exploratórias. Como todo e qualquer preconceito, não faz nenhum sentido. Ou melhor, é, em si, como todo e qualquer preconceito, um exemplo de barbeiragem, de falta de destreza e inteligência.
Aí eu me mudei para a Bahia. De cara, houve duas reações à minha chegada: a gozação por eu ser paulista (sinônimo de ser caipira, não descolado, ou fresco, metido, de só viver para o trabalho ou sempre reclamando de tudo) e uma autocrítica baiana antecipada (antes que a paulista metida criticasse os costumes locais, os próprios baianos faziam isso). Ambas as reações, nada agradáveis. A primeira foi se tornando menos comum, mas a segunda persiste, o que me entristece.
Pela primeira vez, estive do lado de quem é julgado por sua suposta cultura, claro que sem o mesmo peso dos nordestinos fora de seus estados. Porque, de qualquer modo, embora "paulista", eu sou branca (um pouco amarela, é verdade) numa terra de maioria negra e parda. Aqui as divisões étnico-econômicas são muito evidentes. Quem "serve" é normalmente negro ou pardo. Também não vejo muita diversidade nas relações - lembro como me surpreendi ao conhecer os amigos do marido: todos brancos, altos, bonitos, hetero e bem nutridos. Eu, que venho de uma cidade caótica e multicultural, que tenho amigos de toda cor, credo, formação, classe social, orientação sexual, fiquei um pouco espantada. Nunca tinha estado em um grupo tão homogêneo, a nata da sociedade soteropolitana.
Aqui e ali, vejo que agradaria às pessoas que eu me tornasse mais baiana, como uma aceitação plena do novo locus. Mas aceitar o novo locus e me encantar com ele não significa deixar de ser quem sou - brasileira, filha de nordestino e nissei, paulista.
O fato fatídico é que sou estrangeira, talvez sempre seja, apesar da minha facilidade de adequação às situações. Não acho isso nada ruim - por sê-lo é que posso perceber as nuances das relações, da cultura local, e me enternecer com situações como a de ir à Avenida Sete comprar coisas para casa e as vendedoras se despedirem de mim assim: "Tchau, meu amor. Vai com Deus". Coisa mais linda não há, e eu vejo, e sei, porque, vinda de fora, estou dentro.
Em São Paulo, o estado com maior número de baianos fora da Bahia e maior número de nordestinos do país, isso é e sempre foi corriqueiro. Baiano é sinônimo de nordestino, baianada é sinônimo de burrice, de barbeiragem. Por extensão, todo nordestino seria afeito a barbeiragens. Não bastasse o horror, a indecência de se dizer isso de toda e qualquer pessoa, seja quem for e de onde for, ainda por cima é uma afirmação injusta com quem trabalha muito, muitas vezes de sol a sol, muitas vezes em condições precárias e exploratórias. Como todo e qualquer preconceito, não faz nenhum sentido. Ou melhor, é, em si, como todo e qualquer preconceito, um exemplo de barbeiragem, de falta de destreza e inteligência.
Aí eu me mudei para a Bahia. De cara, houve duas reações à minha chegada: a gozação por eu ser paulista (sinônimo de ser caipira, não descolado, ou fresco, metido, de só viver para o trabalho ou sempre reclamando de tudo) e uma autocrítica baiana antecipada (antes que a paulista metida criticasse os costumes locais, os próprios baianos faziam isso). Ambas as reações, nada agradáveis. A primeira foi se tornando menos comum, mas a segunda persiste, o que me entristece.
Pela primeira vez, estive do lado de quem é julgado por sua suposta cultura, claro que sem o mesmo peso dos nordestinos fora de seus estados. Porque, de qualquer modo, embora "paulista", eu sou branca (um pouco amarela, é verdade) numa terra de maioria negra e parda. Aqui as divisões étnico-econômicas são muito evidentes. Quem "serve" é normalmente negro ou pardo. Também não vejo muita diversidade nas relações - lembro como me surpreendi ao conhecer os amigos do marido: todos brancos, altos, bonitos, hetero e bem nutridos. Eu, que venho de uma cidade caótica e multicultural, que tenho amigos de toda cor, credo, formação, classe social, orientação sexual, fiquei um pouco espantada. Nunca tinha estado em um grupo tão homogêneo, a nata da sociedade soteropolitana.
Aqui e ali, vejo que agradaria às pessoas que eu me tornasse mais baiana, como uma aceitação plena do novo locus. Mas aceitar o novo locus e me encantar com ele não significa deixar de ser quem sou - brasileira, filha de nordestino e nissei, paulista.
O fato fatídico é que sou estrangeira, talvez sempre seja, apesar da minha facilidade de adequação às situações. Não acho isso nada ruim - por sê-lo é que posso perceber as nuances das relações, da cultura local, e me enternecer com situações como a de ir à Avenida Sete comprar coisas para casa e as vendedoras se despedirem de mim assim: "Tchau, meu amor. Vai com Deus". Coisa mais linda não há, e eu vejo, e sei, porque, vinda de fora, estou dentro.
Marcadores:
alteridade,
brasilidade,
estrangeira,
identidade,
nordestinidad,
pertencimento,
vivendo e aprendendo
quinta-feira, 5 de janeiro de 2017
Quase dois irmãos: merecimismo e meritocracia
Outro dia falei da meritocracia, essa falácia travestida de recompensa aos desvalidos esforçados. Hoje, li um texto da sempre ótima Eliane Brum sobre os filhos de classe média que, mesmo tão "preparados" materialmente para a vida, estão completamente despreparados para a vida. Tudo porque, segundo Brum, os pais os têm enganado com outra falácia, a de que merecem tudo. Assim, sem esforço, graciosamente, por uma suposta genialidade. Não lhes ensinam a lidar com a frustração, com a falta, com a raiva. Seria quase o oposto da meritocracia, se não provocasse males similares. Eu batizei esse mal irmão da meritocracia de merecimismo (se é que alguém já não o chamou assim).
Enquanto a meritocracia desvia a atenção de todos da desigualdade social, o merecimismo desvia o olhar dos problemas da vida real que podem acometer os mais abastados.
Tenho visto exemplos de merecimismo no cotidiano, tanto em jovens que fazem as coisas pela metade, numa espécie de dormência física, como em crianças que ficam transtornadas por não terem alguma coisa. A fonte do mal é a mesma: não terem aprendido com seus pais que nem sempre terão tudo à mão, que nem sempre haverá alguém que faça as coisas por eles. Quando caírem na real - o mundo e o contato com a diversidade, e as consequentes respostas não aprendidas em casa -, como vão reagir? Com raiva, batendo o pé? Alguns talvez sejam mais agressivos, recorram à violência; outros podem até entrar em depressão. O mais terrível é perceber que dentro dessa bolha criada em família conceitos como civilidade, liberdade e justiça são necessariamente distorcidos - por exemplo, não ser justo que o outro tenha e eu não, não por uma questão de injustiça social, mas porque o outro tem culpa na minha falta. Algo que beira o conceito de inveja, em que não quero que o outro tenha algo que não tenho, como se o fato de ele não ter abrandasse a minha falta. Claro: não abranda. E isso só cria mais amargura, mais inveja, mais violências, grandes e pequenas.
O filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, traz esses dois irmãos conceituais numa chave menos óbvia, mas possível: a menina pobre, filha da empregada, batalha por uma vaga na universidade pública, e vence. Por seu talento, por seu esforço, e também pelo esforço da mãe, que lhe garantiu condições mínimas para que estudasse, além de ter aprendido com um professor que ela não deveria se sentir inferior a ninguém. Já o filho da patroa, que teve acesso a tudo de melhor, não consegue seu lugar ao sol, e fica deprimido com a derrota inesperada, absurda. O que faz sua mãe? Dá a ele uma temporada no exterior, para fazer um curso livre em Harvard, por um ano. Não lhe ensina a lidar com a frustração - varre a malvada para debaixo do tapete. Na verdade, não ensina nada, oculta a verdade, não concede um pouco de luz ao filho - ela, que lhe deu à luz.
Sob as nuvens da meritocracia e do merecimismo, vivemos tempos sombrios.
Enquanto a meritocracia desvia a atenção de todos da desigualdade social, o merecimismo desvia o olhar dos problemas da vida real que podem acometer os mais abastados.
Tenho visto exemplos de merecimismo no cotidiano, tanto em jovens que fazem as coisas pela metade, numa espécie de dormência física, como em crianças que ficam transtornadas por não terem alguma coisa. A fonte do mal é a mesma: não terem aprendido com seus pais que nem sempre terão tudo à mão, que nem sempre haverá alguém que faça as coisas por eles. Quando caírem na real - o mundo e o contato com a diversidade, e as consequentes respostas não aprendidas em casa -, como vão reagir? Com raiva, batendo o pé? Alguns talvez sejam mais agressivos, recorram à violência; outros podem até entrar em depressão. O mais terrível é perceber que dentro dessa bolha criada em família conceitos como civilidade, liberdade e justiça são necessariamente distorcidos - por exemplo, não ser justo que o outro tenha e eu não, não por uma questão de injustiça social, mas porque o outro tem culpa na minha falta. Algo que beira o conceito de inveja, em que não quero que o outro tenha algo que não tenho, como se o fato de ele não ter abrandasse a minha falta. Claro: não abranda. E isso só cria mais amargura, mais inveja, mais violências, grandes e pequenas.
O filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, traz esses dois irmãos conceituais numa chave menos óbvia, mas possível: a menina pobre, filha da empregada, batalha por uma vaga na universidade pública, e vence. Por seu talento, por seu esforço, e também pelo esforço da mãe, que lhe garantiu condições mínimas para que estudasse, além de ter aprendido com um professor que ela não deveria se sentir inferior a ninguém. Já o filho da patroa, que teve acesso a tudo de melhor, não consegue seu lugar ao sol, e fica deprimido com a derrota inesperada, absurda. O que faz sua mãe? Dá a ele uma temporada no exterior, para fazer um curso livre em Harvard, por um ano. Não lhe ensina a lidar com a frustração - varre a malvada para debaixo do tapete. Na verdade, não ensina nada, oculta a verdade, não concede um pouco de luz ao filho - ela, que lhe deu à luz.
Sob as nuvens da meritocracia e do merecimismo, vivemos tempos sombrios.
Marcadores:
educação,
males da contemporaneidade,
merecimismo,
meritocracia
Assinar:
Postagens (Atom)