Uma vez, ouvi de uma moça que só encontrei uma vez que "para saber onde se quer chegar, é preciso não esquecer de onde se vem". Me identifiquei muito com aquilo. Afinal, todo dia me lembro o quanto batalhei para ser quem sou - muito embora essa batalha tenha sempre parecido muito natural. Eu sabia, desde muito nova, que ficar esperando não me traria nada. Sempre fui atrás do que queria, sobretudo do conhecimento, que foi o que me levou mais longe sempre. Não teria feito nada diferente.
No entanto, tenho consciência de que teria sido mais difícil se eu não tivesse sido criada entre livros, se não tivesse tido apoio dos meus avós, se minha mãe não empregasse seus esforços na nossa educação. Se, além de pobre, eu fosse negra, com certeza tudo teria sido mais árduo. Quer dizer: não bastaria minha vontade para eu "merecer" minhas vitórias.
Não faz muito tempo que conheci o significado da palavra meritocracia. Para os incautos, seria o termo mais adequado para descrever minha trajetória. (Alguém pode objetar, e lembrar que não me tornei nenhuma milionária, nem ganhei prêmios no exterior por alguma descoberta científica relevante. Mas acho que minha trajetória é vitoriosa - poderia ter me contentado a cursar qualquer coisa só para conseguir um trabalho, e então viver de pagar contas e ambicionar coisas caras; acabei optando por ter um conhecimento de qualidade, que não cessa de crescer, para ficar só na esfera das "riquezas".)
Eu quase acreditei por um momento que a meritocracia era um bom verbete, que daria conta de tratar da superação, do autoconhecimento etc. Aí percebi que era uma falácia, uma forma de os poderosos afirmarem que o problema não é a desigualdade social, mas a preguiça da maioria em sacudir a poeira e partir pra conquista dos seus sonhos, como se isso em si bastasse, como se não fosse necessário dar oportunidades iguais a todos. Desse modo, o problema é transferido para os indivíduos, para sua incompetência, retirando do Estado a responsabilidade de garantir o bem-estar social a todas as pessoas. Somente alguns poucos não privilegiados conquistam algo melhor porque são poucos os que de fato correm atrás, que "merecem" chegar lá.
Trata-se de uma armadilha pérfida do neoliberalismo. Já vi muita gente boa acreditando nisso, que basta a iniciativa individual para alguém ascender socialmente. Sem condições equânimes de estudo e trabalho (para não mencionar o bem-estar familiar, a alimentação saudável etc.), é quase um milagre o sujeito pobre, negro, nordestino, mulher, homossexual se destacar. Também acaba sendo uma forma de se encerrarem os desagradáveis debates sobre a desigualdade. Quem não conseguiu, é porque se esforçou pouco, ora essa!
E assim alimenta-se uma sociedade ainda mais rancorosa, desigual, improdutiva. Quem falhou, não cobra do Estado melhores condições de vida - limita-se a invejar quem as possui. Quem as possui, olha com arrogância para os desvalidos. Aumenta a violência, cresce a necessidade de consumo de todo lado, para quem quer continuar sendo cidadão "diferenciado" e para quem quer se tornar "cidadão" aos olhos do outro.
Com o domínio da meritocracia no imaginário geral, cada vez mais vemos a democracia se distanciar.
sábado, 26 de novembro de 2016
Eu canto porque o instante exige
Ontem quis contar ao marido uma história sobre minha relação com o canto. Não consegui. Talvez não fosse a hora.
Tive essa vontade porque outro dia comentávamos o documentário Happy, de Roko Belic, que ele e eu assistimos, cada um num dia. Muitas coisas ali eu já intuía e praticava. Mas as histórias alheias de dor, superação e descoberta de si sempre me levam lágrimas aos olhos, como a de uma mulher que havia sido linda, e após ter sido atropelada por uma picape tem a beleza destruída e o passado de abuso todo trazido à tona. Resultado: ela se agarrou à tarefa de cuidar dos filhos, ao trato de animais (os sempre maravilhosos caballitos), olhou para si mesma e retomou a vida, com unhas e dentes. Abandonada pelo marido, que não deu conta do desastre alheio, encontrou um novo amor, com o lindo nome de Happy. Demais, demais, demais!
A ideia mais bacana do documentário, na minha opinião, é a do fluxo. Eu já usava essa expressão, estar no fluxo, emprestada da minha amiga Marisa, para falar da presentificação, da gratidão, da aceitação - é quando as coisas começam a acontecer, porque nos movemos, porque aceitamos o que é dado mas nos abrimos ao que vem. No documentário, estar no fluxo também tem a ver com estar presente, mas associado àquilo que nos dá prazer. Praticar atividades físicas, ajudar alguém, desenvolver um talento.
Foi aí que me veio a história do canto, do que significa para mim. Desde muito pequena, sempre gostei de cantar. Sem nenhuma pretensão artística, apenas porque me espanta os males, me liberta. Desde sempre. Quando não canto, quando falo, minha voz é meu salvo-conduto. Por isso, na época em que estive ligada a uma igreja, e os pretensos cantores do coral faziam caretas ao me ouvir cantarolar, aquilo me doía como uma injustiça. Quando eu falava, muita gente torcia o nariz: "metida!". Até um namorado que lá tive, músico "abençoado", não me estimulava de nenhum modo a cantar ou a falar. Ninguém queria me ouvir na igreja. Então, saí.
Fui redimida nos círculos laicos. Muita gente dizendo que eu devia trabalhar com a voz, ir para o teatro, para a rádio. Uma vez, numa reunião na casa de amigos, cantei ao lado de um rapaz que tocava violão. Ele disse que eu cantava bem. Nem levei a sério, mas me apaixonei um pouquinho. Não sei se dá para entender - era como se ele visse a mim, não simplesmente ouvisse/julgasse a voz. Porque ali eu estava inteira, presente, no fluxo.
Depois levei um monte de gente aos karaokês da Liberdade. Quero ouvir as pessoas tirando de dentro de si sua verdadeira voz. Detesto quando rola alguma repressão, velada ou não. Vejo como as pessoas ficam felizes ao cantar sem serem julgadas.
Embora meu marido não tenha parado para ouvir essa história, um dos motivos para casar com ele foi o respeito que ele mostra quando me meto a cantar, nos karaokês ou em casa. Nada de caretas, de julgamentos. Vê que é uma das minhas situações de "fluxo", como bordar, cozinhar, desenhar, e me estimula. Ele vê a mim em minha voz.
Cada vez que o instante exige, portanto, eu canto. E reapareço, e me fortaleço.
Tive essa vontade porque outro dia comentávamos o documentário Happy, de Roko Belic, que ele e eu assistimos, cada um num dia. Muitas coisas ali eu já intuía e praticava. Mas as histórias alheias de dor, superação e descoberta de si sempre me levam lágrimas aos olhos, como a de uma mulher que havia sido linda, e após ter sido atropelada por uma picape tem a beleza destruída e o passado de abuso todo trazido à tona. Resultado: ela se agarrou à tarefa de cuidar dos filhos, ao trato de animais (os sempre maravilhosos caballitos), olhou para si mesma e retomou a vida, com unhas e dentes. Abandonada pelo marido, que não deu conta do desastre alheio, encontrou um novo amor, com o lindo nome de Happy. Demais, demais, demais!
A ideia mais bacana do documentário, na minha opinião, é a do fluxo. Eu já usava essa expressão, estar no fluxo, emprestada da minha amiga Marisa, para falar da presentificação, da gratidão, da aceitação - é quando as coisas começam a acontecer, porque nos movemos, porque aceitamos o que é dado mas nos abrimos ao que vem. No documentário, estar no fluxo também tem a ver com estar presente, mas associado àquilo que nos dá prazer. Praticar atividades físicas, ajudar alguém, desenvolver um talento.
Foi aí que me veio a história do canto, do que significa para mim. Desde muito pequena, sempre gostei de cantar. Sem nenhuma pretensão artística, apenas porque me espanta os males, me liberta. Desde sempre. Quando não canto, quando falo, minha voz é meu salvo-conduto. Por isso, na época em que estive ligada a uma igreja, e os pretensos cantores do coral faziam caretas ao me ouvir cantarolar, aquilo me doía como uma injustiça. Quando eu falava, muita gente torcia o nariz: "metida!". Até um namorado que lá tive, músico "abençoado", não me estimulava de nenhum modo a cantar ou a falar. Ninguém queria me ouvir na igreja. Então, saí.
Fui redimida nos círculos laicos. Muita gente dizendo que eu devia trabalhar com a voz, ir para o teatro, para a rádio. Uma vez, numa reunião na casa de amigos, cantei ao lado de um rapaz que tocava violão. Ele disse que eu cantava bem. Nem levei a sério, mas me apaixonei um pouquinho. Não sei se dá para entender - era como se ele visse a mim, não simplesmente ouvisse/julgasse a voz. Porque ali eu estava inteira, presente, no fluxo.
Depois levei um monte de gente aos karaokês da Liberdade. Quero ouvir as pessoas tirando de dentro de si sua verdadeira voz. Detesto quando rola alguma repressão, velada ou não. Vejo como as pessoas ficam felizes ao cantar sem serem julgadas.
Embora meu marido não tenha parado para ouvir essa história, um dos motivos para casar com ele foi o respeito que ele mostra quando me meto a cantar, nos karaokês ou em casa. Nada de caretas, de julgamentos. Vê que é uma das minhas situações de "fluxo", como bordar, cozinhar, desenhar, e me estimula. Ele vê a mim em minha voz.
Cada vez que o instante exige, portanto, eu canto. E reapareço, e me fortaleço.
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